O Corinthians na Bolívia, o Porsche no cruzamento e o bambolê jurídico-midiático

Ucho Haddad –

Acreditando que é o quarto Poder neste país que mais parece uma barafunda, a imprensa peca ao não cumprir o seu papel de informar de maneira clara, didática e isenta, proporcionando a chance de o cidadão raciocinar, e erra quando chama para si a prerrogativa burra de condenar por antecipação. Isso normalmente acontece quando o universo midiático sofre uma escassez de manchetes ou quando o oportunismo barato serve para alguém.

Não é esse o papel da imprensa, por mais que discordem os profissionais da área. O Corinthians foi à Bolívia para disputar uma partida válida pela Copa Libertadores da América, mas o confronto com a equipe do San José acabou em tragédia. Um artefato pirotécnico acionado por algum torcedor alvinegro e apontado na direção da torcida adversária tirou a vida do jovem Kevin Douglas Beltrán Espada, de 14 anos, na cidade de Oruro.

Como era de se esperar, o Corinthians foi a bola da vez nesta quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013, com direito a ser alçado ao patíbulo da culpa. É preciso parcimônia ao analisar os fatos, pois os excessos de alguns comunicadores sugerem que o atual campeão mundial de futebol deve ser excluído da competição. Isso chama-se “achismo”, no linguajar comum, e exercício arbitrário da própria razão, no jargão jurídico.

Passemos à análise dos fatos… O Corinthians joga em outro país e seus torcedores o seguem. Um dos integrantes da torcida comete um crime e o clube é culpado? Há nesse raciocínio um tremendo equívoco, que serve como muro de arrimo para o sensacionalismo barato. De chofre é preciso destacar que no caso em questão prevalecem as leis da Bolívia, pois foi neste país que o homicídio foi cometido, seja ele doloso ou culposo. Como no Direito Penal não há concurso de culpas, o único culpado pelo crime é o torcedor que acionou o rojão. Querer punir o Corinthians é exacerbação do raciocínio.

Tomo, então, outro prisma de análise. Na Bolívia não é proibido o manuseio de fogos de artifício em arenas esportivas, segundo relatou a afobada imprensa brasileira. Se isso for verdade, o furdunço perde força. Se o Corinthians tem culpa, como sugerem alguns jornalistas, no rol dos culpados devem estar as autoridades de segurança pública da Bolívia, o San José – mandante da partida – e a entidade que organiza o certame internacional. Na verdade, o que se busca a partir do entendimento múltiplo e confuso é provocar um tsunami com apenas um copo d’água.

Certo seria se a entidade responsável pela Copa Libertadores da América estabelecesse previamente, com a anuência dos clubes participantes e das autoridades dos respectivos países, as regras básicas de segurança, intransponíveis em qualquer situação. A partir dessa medida poder-se-ia discutir a eventual culpa do Corinthians. Para que o meu pensamento sobre o assunto fique claro, tomo o escândalo do Vaticano como exemplo inverso. Os operadores da Santa Sé cometem seus crimes há décadas e por conta disso todos os católicos são culpados? Não é assim que funciona o Direito Penal.

Trago o exemplo para o Brasil… O caso do atirador do cinema, em um shopping da cidade de São Paulo. O cidadão entra na sala de cinema armado, dispara a esmo, mata catorze pessoas e fere outras cinquenta, e o dono do cinema é culpado? Claro que não! Concurso de culpas há no Direito Civil, não no Penal, como já salientei.

Não se trata de querer salvar o Corinthians, mas de não colocar a culpa sobre quem não é culpado. E se no regulamento da Copa Libertadores não estão definidas regras de segurança, a ausência das mesmas é motivo para que não haja punição ao clube brasileiro.

Essa mania obtusa de culpar por antecipação e aquele que culpado não é está se tornando rotina no Brasil, onde as leis são desrespeitadas e a interpretação que se dá a cada uma delas depende do caso e do interesse dos envolvidos em determinado crime. Não é preciso fazer longa viagem no tempo para confirmar o que muitos já sabem. O caso do acidente automobilístico que ocorreu na Zona Sul da capital paulista e ganhou o noticiário apenas porque um dos veículos envolvidos era um Porsche, é o melhor exemplo dessa confusão que causa a condenação antecipada por parte da mídia.

Criou-se no Brasil o péssimo hábito de acreditar em uma crendice obtusa: quem tem posses é obrigatoriamente um tresloucado. Essa não é a tradução da realidade. Há endinheirados descontrolados, como há ricos equilibrados. De igual modo existem desprovidos materialmente responsáveis, como existem desafortunados materialmente que são “doidos”. Por qual razão a imprensa usa a régua do próprio interesse para medir um determinado fato. É preciso usar a régua do bom senso, da verdade, sob pena de assim não fazendo acabar empurrando a culpa para quem não deve.

Volto ao caso do Porsche. O engenheiro Marcelo Malvio Alves de Lima saiu com seu Porsche de um restaurante na região do Itaim Bibi, contigua aos Jardins, e ultrapassou o limite de velocidade permitido em determinada via. O que é isso? Infração de trânsito. Na rua transversa, a advogada baiana Carolina Menezes Cintra Santos dirigia o seu carro na madrugada e ultrapassou o sinal vermelho, chocando-se com o Porsche de Malvio. O que representa esse conjunto de fatos? Um acidente envolvendo dois veículos na maior cidade brasileira e o cometimento de duas infrações de trânsito: o excesso de velocidade por parte do engenheiro e o desrespeito ao sinal vermelho pela advogada.

Tudo acabaria em alguma Vara Cível da Justiça paulistana não fosse o fato de Carolina Menezes ter morrido no local do acidente. Por conta desse trágico detalhe o panorama de análise mudou sobremaneira. Passou a ser um caso de, no máximo, homicídio culposo, pois não houve a intenção de matar do motorista do Porsche. Na verdade, Carolina foi vítima não do Porsche veloz de Marcelo Malvio, mas de sua imprudência ao ignorar uma lei de trânsito do crime de dirigir embriagada, o que foi atestado por peritos da Polícia Civil.

Inverter a culpa é algo muito fácil, dependendo da necessidade de quem o faz ou do interesse de quem encomenda a alternância, no caso do acidente, criminosa. Seguindo a lógica do raciocínio, o que não significa que é regra, quem tem um Porsche quase novo não é um desprovido em questões financeiras. Marcelo Malvio é um profissional da engenharia e cumpridor de suas obrigações. Carolina Menezes, filha de família abastada de Salvador, era advogada supostamente competente, pois trabalhava em um conhecido escritório de advocacia de São Paulo, cuja matriz é no Rio de Janeiro. Dirigir sob o efeito de álcool é crime, como se sabe, mas não se poderia arrastar o escritório de advocacia ao cerne da culpa caso o resultado do acidente fosse inverso. Ou seja, se Marcelo Malvio tivesse morrido e Carolina Menezes, sobrevivido.

No caso do acidente automobilístico ocorreu uma estranha inversão da verdade na feitura do boletim de ocorrência policial, o que levou o Ministério Público a interpretação equivocada. Marcelo Malvio foi denunciado por homicídio doloso, quando há a intenção de matar, o que é um absurdo por parte da acusação. Acontece que Carolina Menezes gravitava na órbita de um grupo de gente poderosa e extremamente endinheirada. Apenas para que fique registrado.

A situação de Marcelo Malvio e similar à do Corinthians. Que culpa tem o alvinegro paulistano se um torcedor do clube foi à Bolívia e no estádio de Orocuro acionou um artefato pirotécnico e apontou-o na direção de um jovem, tirando-lhe a vida? Nenhuma! Mesmo que o clube tenha financiado a ida deste torcedor até o país sul-americano, não há como penalizar o Corinthians. Que culpa tem Marcelo Malvio, mesmo que tenha excedido o limite de velocidade, se naquela noite Carolina Menezes havia bebido e dirigindo ignorou o sinal vermelho? Nenhuma!

O que a mídia tenta fazer no caso do Corinthians é o mesmo que fez no caso do acidente que envolveu Malvio e Carolina. Jogar um caminhão de areia diante de um ventilador ligado. Cria-se uma nuvem enorme de poeira, discute-se à exaustão um punhado de conjecturas, permite-se que a verdade seja manipulada e que inocentes sejam culpados. Um Estado Democrático de Direito não pode ser refém do sensacionalismo da imprensa e muito menos de condenações antecipadas, as quais interessam a uns e beneficiam outros.

Não se pode prever o que acontecerá com o Corinthians e com Marcelo Malvio, pois a Justiça é uma usina de surpresas. Contudo, pelo menos um fato é absolutamente certo. Ambos, o Corinthians e Malvio, são inocentes, além de serem vítimas de um “bambolê” jurídico-midiático que funciona à base de um coquetel de achismos com exercício arbitrário da própria razão.

Alegar que é preciso punir um inocente de destaque para dar o exemplo a sociedade é covardia moralista. Eis a grande mazela de boa parte da imprensa nacional. Muita gente que se acha até agora não se encontrou.

Independentemente de quem sejam a culpa, que o jovem torcedor boliviano e a advogada baiana descansem em paz.