Produzindo sempre – Carlos Felipe Saldanha, mais conhecido no meio literário como Zuca Sardan, chega em 2013 aos 80 anos com fôlego de menino. Na manhã de 24 de março, um domingo de céu claro, mas com os termômetros alemães marcando dois graus abaixo de zero, o escritor participou de uma mesa-redonda organizada pela Secretaria de Cultura e pelo Fórum de Filosofia da pequena cidade de Kelkheim, a 23 quilômetros de Frankfurt.
Tendo como tema Reisende Diebe – Brasiliens Poesie und Philosophie (Ladrões Itinerantes – A poesia e a filosofia do Brasil), o descontraído encontro de Zuca com os alemães foi inspirado na coletânea de poesia brasileira Ladrões itinerantes, lançada em 2001 pela editora P. Kirchheim Verlag, de Munique. O livro foi organizado pela tradutora alemã Ellen Spielmann. Além de Zuca Sardan, há poetas como Ana Cristina César, Paulo Leminski, Hilda Hilst, José Paulo Paes e Adélia Prado.
A mesa-redonda, que teve a moderação de Andreas Fornefett e a tradução de Michael Kegler, que verteu as palavras de Zuca para o alemão, acabou se tornando uma palestra bem humorada e sem maiores rigores históricos, com o inspirado poeta abordando o Brasil desde os tempos coloniais até meados da década de 60, quando ainda vivia no Brasil.
Em duas horas de preleção, o autor brasileiro traçou um quadro das configurações político-filosóficas que resultaram na formação da cultura brasileira, num discurso cheio de ironia, como é de seu feitio. Para explicar a identidade da elite brasileira como sendo portugueses ultramarinos, Zuca não poupou criatividade: “Quando Napoleão invadiu Portugal, dom João 6º, que tinha ar de burro e gostava de imitar seu próprio personagem de burro, veio com toda a corte, entrando com as caravelas no Brasil. Mas dom João não ficou em Salvador, que era a capital do país. Foi para o Rio de Janeiro, capital do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. E Napoleão, em suas memórias, disse ‘o único homem que conseguiu me enganar na vida foi dom João 6º'”.
Harmonia de desenho e poesia
Apesar de pouco conhecido no Brasil, Zuca Sardan é um escritor e desenhista festejado por críticos literários de peso, como Flora Süssekind e Heloísa Buarque de Hollanda. Foi Heloísa que revelou a poesia de Zuca para um público maior, com sua antológica edição 26 Poetas Hoje, que saiu em 1975. Nela estavam também Geraldo Carneiro, Chacal, Waly Salomão, Torquato Neto, Ana Cristina César, Cacaso (Antonio Carlos de Brito), entre outros que brotavam da cena alternativa dos anos 70.
Diplomado em Arquitetura, Zuca Sardan começou a trabalhar para o Ministério das Relações Exteriores já em 1963, quando tinha 30 anos. Serviu como diplomata na Argélia, República Dominicana, Estados Unidos, União Soviética, Holanda e Alemanha, radicando-se neste país. Hoje vive em Hamburgo.
Se o emprego no Itamaraty o afastou da cena literária de sua geração, a vida no exterior continua a render muita matéria-prima para desancar príncipes europeus, deuses de todas as matizes e outros personagens hilariantes da fauna humana. Com poemas e desenhos de extrema personalidade, Zuca Sardan honra o “clube” de poetas diplomatas que passaram pelo Itamaraty, escritores da estirpe de Guimarães Rosa, Raul Bopp, Vinícius de Moraes e João Cabral de Melo Neto.
Francisco Alvim, autor que também constou na badalada antologia organizada por Heloisa Buarque de Hollanda e também ex-diplomata, soube descrever a arte de Zuca Sardan com muita sensibilidade: “Sardan utiliza os encantos dos mitos infantis para melhor desvendar aos adultos os desencantos do mundo. São fábulas e apólogos narrados com uma delicada pena de urutau, constantemente banhada em ironia e humor sem equivalentes nas letras pátrias. É como se ele relatasse para nós a vida (o mundo) como ela (ele) é, e a gente não se desse conta”, escreveu na contracapa de Osso do Coração, livro de Zuca Sardan lançado na série Matéria de Poesia, da Editora da Unicamp, em 1993.
O poeta Chacal é outro que sempre se entusiasmou com a irreverência de Zuca Sardan: “Conheci o Zuca através do Chico Alvim, como quase todos os poetas dos anos 70. Cheguei a pensar que Zuca era um heterônimo do Chico, até que um dia, em Belo Horizonte, num fabuloso festival, não sei se em 89 ou 98, Chico me apresentou ao Zuca, que tinha ido da Alemanha à efeméride. Foi uma grande pândega. Zuca na palestra tirava cartas, adivinhava o futuro, ria com um olho só. Depois no táxi, falava que viu Carmen Miranda nua por entre uma basculante do Cassino da Urca”, contou o poeta e agitador cultural carioca, ex-integrante do grupo Nuvem Cigana.
Próximo livro
Zuca Sardan disse, em entrevista ao Deutsche Welle, que a editora Cosac Naify vai lançar seu mais novo livro, Ximerix, em julho. E deu detalhes do que se trata: “Eu pego as poesias, retrabalho 40 vezes, vou recolando. O aluno que cola bem se subordina à palavra do CDF. Mas o colador de estilo não quer que o professor perceba que ele colou. Foi reciclagem que virou matéria original.” Eterno admirador do surrealista alemão Max Ernst, Zuca Sardan também se reinventa em colagens: “Pego naco de jornal, viro a notícia às avessas, assim como o anúncio da farmácia. Viro tudo”.
Filho de um esquerdista e de uma mãe católica, Zuca Sardan tentou ser pintor como o pai, Firmino Saldanha, mas seus trabalhos viviam sendo desprezados pelos salões. De tanto ser rejeitado como artista plástico, autoproclamou-se poeta numa noite de crise no Bar Vermelhinho, reduto de pintores no Rio. Se jogou de cabeça na poesia, mas não abandonou os desenhos, não menos encantadores. “Sou o patrono dos malditos”, disse o seguidor do escrachado modernista Oswald de Andrade. “Comecei a ser desenhista com 5 anos, e poeta com 22. Eu queria ser pintor, desenhista, mas era muito desajeitado e queria fazer tudo diferente dos outros. Fiquei marginalizado.” Ideologicamente, Zuca Sardan nunca se deixou fisgar pela esquerda tradicional, ao contrário de muitos amigos: “Eu já estava à esquerda da esquerda festiva”.
Figura ímpar da literatura brasileira
A editora Companhia das Letras lançou em 2003 a coletânea Boa companhia, que reúne poemas de Zuca, Arnaldo Antunes, Alice Ruiz, Ferreira Gullar, Chacal e outros. Um ano depois, a mesma editora lançou Babylon Mystérios de Ishtar, folhetins de Zuca Sardan. Um livro muito espirituoso, prova da vitalidade espantosa deste poeta octogenário, que de longe vê o brasileiro como um cético alegre e amável. “Tudo que o brasileiro ouve, ele aceita. E esquece.”
Ao final da mesa-redonda em Kelkheim, um dos espectadores perguntou a Zuca Sardan por que o Brasil, agora tão rico, não pegava Portugal no colo e arcava com as dívidas lusitanas. “Portugal é um caso para a Europa”, rebateu o poeta, com a destreza de um Barão de Itararé. (Do Deutsche Welle)