Lupa na mão – A exumação do corpo do poeta Pablo Neruda (1904-1973) poderá levar o Chile a reavaliar capítulos da história de seu passado recente. A análise detalhada dos restos mortais do ganhador do Prêmio Nobel de Literatura (1971) e ativista político começa nesta segunda-feira (08/04) e pretende dar uma resposta definitiva sobre as causas de sua morte.
Neruda morreu no dia 23 de setembro de 1973, exatamente 12 dias após o golpe militar no Chile que levou Augusto Pinochet ao poder. De acordo com a versão oficial aceita até os dias de hoje, a causa da morte do poeta seria um câncer.
No entanto, o motorista de Neruda na época, Manuel Araya, que o levou para o hospital, contesta essa versão. Ele tem certeza de que o poeta, crítico do regime, foi intoxicado com alguma substância analgésica.
Garantida por meio de uma autorização judicial, a exumação deve esclarecer suspeitas que persistem há mais de 40 anos. De acordo com o Serviço Médico Legal (SML) em Santiago, os restos mortais serão analisados por uma equipe internacional de médicos legistas, antropólogos, bioquímicos e toxicólogos.
“Buscamos indícios que possam nos levar a inferir sobre a existência ou não de alguma doença”, explica a coordenadora da Unidade de Identificação Forense do SML, Marisol Intriago Leiva, em entrevista à Deutsche Welle. Análises realizadas tantos anos após a morte são “difíceis, mas não impossíveis”, garante.
Busca pela verdade
A exumação do corpo de Pablo Neruda faz parte do processo de esclarecimento do passado chileno. Cerca de 30 mil pessoas morreram ou “desapareceram” durante o regime militar comandado pelo general Pinochet, entre setembro de 1973 e março de 1990. A identificação dos torturados e assassinados foi dificultada por causa da cumplicidade dos generais. Até hoje não se sabe a identidade de todas as vítimas, cujos parentes ainda mantêm a dolorosa busca por informações.
“A verdade está nos restos mortais”, afirma Alexandra Manescu, do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, única alemã que faz parte da equipe de especialistas. “A dignidade dos mortos precisa ser preservada”, diz Manescu, que cuida diretamente do trato com as famílias. Ela ressalta que, mesmo passados 20 ou 30 anos, o sofrimento dos parentes das vítimas é o mesmo do dia da morte, “mesmo quando isso não é tão aparente”.
O juiz responsável pelo caso, Mario Carroza, afirmou que a exumação é “fundamental para ir fundo na verdade, desconhecida por grande parte da sociedade”, segundo declaração dada ao jornal argentino Diario de Mendoza. Há dois anos, Carroza determinou a exumação de Salvador Allende (1908-1973). A análise dos legistas confirmou que o ex-presidente cometeu suicídio.
Causa de morte duvidosa
Nos últimos dez anos, as dúvidas sobre a versão oficial da causa da morte de Neruda ganharam novos componentes. O poeta foi tratado na mesma clínica em Santiago que o ex-presidente chileno Eduardo Frei Montalva, no poder entre os anos 1964 e 1970. Montalva morreu em 1982 após várias cirurgias de hérnia inguinal. Em 2009, porém, uma nova análise revelou que o político, na verdade, fora envenenado com tálio e gás mostarda – substâncias altamente tóxicas.
Por este motivo, o jornalista chileno Mario António Guzman não considera absurdas as suspeitas que rondam a morte de Neruda. “Acredito que essa é uma hipótese real”, afirmou Guzman, em entrevista à Deutsche Welle. A perseguição de líderes dos meios políticos ou estudantis era um método conhecido no Chile. “A repressão foi seletiva”, diz Guzman, que trabalha para a Radio Cooperativa.
Terremoto político
Porém, no Instituto Pablo Neruda, em Santiago, tal suspeita é encarada com ceticismo. “O instituto mantém a convicção de que Neruda morreu de câncer na próstata”, esclarece o porta-voz Carlos Maldonado. Mas caso as análises feitas pelo SML confirmem algo diferente, ele prevê um terremoto político. “Seria um golpe feroz para o país”, afirma Maldonado. E conclui: de todas as atrocidades cometidas pela ditadura Pinochet, essa seria provavelmente a mais brutal.
O momento para realização da exumação do corpo de Neruda é politicamente delicado, já que o país encontra-se em meio a um processo eleitoral. Em novembro a população vai eleger um novo presidente e um novo Parlamento.
“Se for comprovado que Neruda foi uma das primeiras vítimas da ditadura, isso vai influenciar as eleições”, assegura Guzman. Muitos integrantes do governo precisarão se preparar, pois terão questionadas suas posturas diante da ditadura militar. (Do Deutsche Welle)