Rasgando o território – A ideia repousou na gaveta durante 200 anos – mas agora, finalmente, ela deverá se tornar realidade: a construção de um canal navegável atravessando a Nicarágua e que ligará o Atlântico ao Pacífico. O plano pretende levar o segundo país mais pobre das Américas, depois do Haiti, a ganhar um papel mais relevante na economia mundial. O projeto nunca ultrapassou o estágio de uma mera ideia – mas isso agora vai mudar, segundo o desejo do presidente Daniel Ortega.
Ortega, que frequentemente precisa responder a acusações que vão de corrupção a enriquecimento ilícito, está mais próximo de alcançar um velho sonho. O Congresso, no qual a governista Frente Sandinista ocupa 63 dos 92 assentos, aprovou a concessão da construção do canal a um grupo de Hong Kong. Além do canal, os chineses deverão construir dois portos de águas profundas, um oleoduto, uma linha férrea e um aeroporto internacional.
Na última sexta-feira (14), Ortega conferiu oficialmente ao grupo chinês a concessão para construir o novo canal. O acordo foi assinado na capital Manágua.
Sair da pobreza
Em troca, os chineses poderão participar por 100 anos nos lucros de operação do canal. E a partir de 2015, a Nicarágua já poderá contar com um crescimento econômico dobrado. “Com esse acordo, toda a história da Nicarágua irá mudar”, declarou o secretário de políticas públicas do governo da Nicarágua, Paul Oquist. “Acreditamos que este projeto irá tirar nosso país da pobreza e do subdesenvolvimento.”
É questionável, porém, se os quase 6 milhões de habitantes da Nicarágua – dos quais quase metade vive na pobreza – concordam com essa linha de raciocínio: o canal passará pelas terras de povos indígenas, que não foram consultados sobre o projeto.
Em carta endereçada ao presidente Ortega, e publicada por vários jornais de Manágua, um engenheiro ressalta os verdadeiros problemas do país: “Quando não há mais medicamentos nos hospitais, nem cadeiras e bancos nas escolas, isso significa que falta dinheiro para coisas básicas.”
Canal como fonte de renda
Mas é justamente isso que se espera que o canal traga à Nicarágua: riqueza e bem-estar social. A partir de 2023, navios porta-contêiner deverão transportar até 570 milhões de tonelada de cargas através da nova passagem – ou seja, quase 5% do comércio marítimo mundial. A poucas centenas de quilômetros ao sul, os nicaraguenses podem ter uma ideia da rentabilidade do empreendimento: pelo uso de seu canal, o Panamá ganha anualmente 1 bilhão de dólares –cifra que tende a subir, já que o Canal do Panamá está sendo dragado atualmente para que, nos próximos dois anos, cargueiros ainda maiores possam atravessá-lo, pagando taxas de pedágio ainda mais altas.
O canal da Nicarágua deverá ser mais profundo, mais largo e, com 200 quilômetros de cumprimento, quase três vezes mais extenso que o Canal do Panamá. E a Nicarágua não quer lucrar somente com o transporte de mercadorias. A construção do canal implicará a criação de 600 mil novos empregos.
O governo nicaraguense assegura que seu canal não deverá ser um concorrente do Canal do Panamá, mas sim um complemento, devido às expectativas de crescimento do comércio marítimo mundial.
Muitas perguntas, nenhuma resposta
Por trás de tanto otimismo, outras questões estão sendo deixadas de lado. Por exemplo, se a empresa fundada há poucos meses, a HK Nicarágua Canal, é realmente capaz de executar o gigantesco projeto. O diretor-geral do grupo, um empresário pequinês de 40 anos, tem ainda em seu comando uma série de empresas, entre elas, uma de telecomunicações. E não são poucos os nicaraguenses que questionam o papel do governo chinês nesse projeto. Pois a influência de Pequim pode aumentar consideravelmente – e modificar politicamente a região.
Também o percurso do canal ainda não está claro: recentemente, o presidente Ortega disse favorecer uma rota através do Grande Lago da Nicarágua. Essa sugestão, no entanto, irritou bastante um dos principais ecologistas e conselheiro ambiental do presidente, Jaime Incer Barquero. Ele lembrou ao presidente que, por lei, o lago foi declarado reservatório de água potável.
“A tarefa do Grande Lago da Nicarágua é servir como fonte de água para a Nicarágua e a América Central”, disse o cientista. E o turismo, que apenas iniciou sua expansão ao redor do lago, poderia ser sufocado pelo canal. (DW)