(*) Ucho Haddad –
Na Grécia Antiga, nos idos antes de Cristo, o craque Platão disse certa vez que “não deve gerar filhos quem não quer dar-se ao trabalho de criá-los e educá-los”. Se de fato Platão disse isso não sei, mas de boca em boca a frase atravessou a história e cá está. O tempo – bons séculos – passou até que algum publicitário brasileiro reinventou a profecia do filósofo grego, que por sua obviedade sempre foi e ainda é repetida à exaustão. Foi que surgiu, como assinatura da campanha publicitária da mais popular “água benta” das pancadas e tropeções, a frase “não basta ser pai, tem que participar”.
Platão e o tal publicitário jamais se conheceram, mas pelo menos duas coisas eles têm em comum: acreditam que é preciso ser pai Gelol e desconhecem como é difícil essa tarefa nos dias atuais. A situação é tão complexa, que se pudesse trocaria de papel com o meu próprio pai. Só não faço isso porque alguém chamou-o antes da hora, apesar de muitos dizerem que toda hora é a hora certa.
Quantos de nós já não sonhamos, pelo menos uma vez, em dar aos próprios filhos muito mais do que recebemos de nossos pais? Com certeza não estou só na empreitada do pensamento que ficou para trás, parada na história. A vida muda a cada instante e com ela mudam os desejos. Na verdade, os sonhos alinham-se automaticamente com essas mudanças, pois sem eles nada somos. Até porque, o sonho é o preâmbulo da realização.
No dia em que meu pai despediu-se de mim antes de sua partida, algo estranho pairou no ar. Quando, horas depois daquele encontro inusitado, atendi ao telefone e ouvi alguém falando o que não queria ouvir, a sensação de antes transformou-se em realidade inexplicável. Esse viés da inexplicabilidade tornou-se ainda maior porque coube a mim dar-lhe a senha para uma viagem sem volta. Paciência, a vida tem dessas coisas desagradáveis, tristes e difíceis.
Passado o impacto, percebi que dura seria a minha missão se quisesse dar aos meus filhos o mesmo que recebi. Não me refiro ao material, mas às muitas lições que me foram disponibilizadas ao longo dos anos. Duro e intransigente, meu pai foi muito mais ausente, em termos físicos, do que presente. Ora por conta do trabalho, ora por causa das consequências nefastas da ditadura militar, que em algumas ocasiões o perseguiu de forma implacável e covarde. Mesmo assim, sua presença se materializava no rastro das muitas lições que deixou. Homem de poucas palavras, falava apenas e tão somente quando necessário. Seu olhar era revelador, seu silêncio quase persistente era resposta. Dono de raciocínio brilhante e lógico, senhor de coerência inquietante.
A última frase que ouvi do meu pai foi “volto para o seu aniversário”. Algo surpreendente de alguém que em mais de uma ocasião não se lembrou do próprio aniversário. E aquela foi a primeira vez que ouvira tal frase. Naquele ano, 1984, o meu aniversário chegou, mas João Francisco, meu pai, não. Apesar de tudo, sua ausência serviu para me mostrar a importância do maior presente que ele poderia ter me dado. Existir sem atrapalhar a existência alheia. Absolutamente justo, fez da sua humildade um monumento destacado por muitos. Quase sempre recluso, emprestou sua genialidade, testada e confirmada, aos poucos que dele se aproximaram.
Nossa incrível semelhança física, que fez os saudosistas se aproximarem com a pergunta de sempre (Você é filho do João?), obrigou-me a tentar ser melhor, pois não nasci para ser filho de alguém. Inspirado no meu próprio pai, a perfeição passou a frequentar a minha mira, como se alcançá-la fosse possível. Sabendo que perfeitos não somos, acreditei nisso, mesmo que em consciente autoenganação, porque precisava eliminar o estigma que existia no bordão vociferado por aqueles que o conheceram. Não porque tivesse qualquer rejeição ao meu pai, muito pelo contrário, mas porque precisava ser reconhecido isolada e individualmente, sem qualquer vínculo com o “velho”, que de tão jovem sua ida sem volta até hoje é uma judiação.
A ideia inicial era superá-lo. A batalha para ao menos emparelhar foi extenuante, mas jamais pensei em desistir. Afinal, acreditando na teoria matemática de que a ordem dos fatores não altera o produto, queria chegar a um dia em que o João seria reconhecido como pai do Ucho. Por questões óbvias não consegui, o que é bom, porque só assim, inspirado nele, continuarei buscando aquela sua perfeição, mesmo ele tendo sido um imperfeito como qualquer outro.
A melhor de todas as suas lições, que não esqueço e sempre a escrevo e repito, é que “muitas vezes o sucesso de alguém está no brilho do sapato alheio”. Disse-me aquele caipira de São José do Rio Preto que, ainda muito jovem, começou a vida como engraxate, entregador de armazém e responsável por dobrar a lona do circo. Coisa de gente comum e humilde, mas que com o avanço dos anos tornou-se um pai, diria eu, padrão FIFA, consideradas as quase intransponíveis exigências feitas pela central do futebol planetário.
Não conheci Platão e nunca usei Gelol, mas tenho me valido da frase do filósofo grego e da assinatura da campanha publicitária para, como pai, tentar deixar aos meus filhos pelo menos as lições que recebi do avô deles. Ser humilde o tempo todo e buscar a excelência sem parar, sempre lembrando que alcançá-la é a mais impossível das possibilidades.
João, meu velho, não vou dizer que foi bom enquanto durou, porque o exemplo que você deixou é sem fim e ainda dura. E há de durar, como se fosse uma herança inesgotável. Ou seja, continua sendo bom como sempre foi.
Para mim você foi “o cara”, mas lembre-se que estarei eternamente no seu encalço, até porque o João sempre será o pai do Ucho. E por isso preciso tentar ser melhor a cada instante, mesmo que continue sendo o de sempre. Afinal, lendo Platão ou não, sendo Gelol ou não, todo dia é dia dos pais e é preciso participar.
(*) Ucho Haddad é jornalista político e investigativo, analista e cometarista político, cronista esportivo, escritor e poeta.