Lenha na fogueira – “Quando saio de casa, eu não visto. Eu caminho um pouco e só depois coloco.” Youssra, de 18 anos, optou por usar o niqab – véu islâmico que deixa à mostra apenas os olhos – contra a vontade dos pais. Ao andar num mercado próximo a Paris, ela mantém no bolso o pedaço de tecido proibido desde 2010 nas ruas da França. “Na escola, não posso usá-lo. Quando saio, sou considerada estúpida porque estou com o véu. Isso não é vida, é um aborrecimento.”
A lei parece simples, mas causa grande controvérsia. Apenas 0,003% da população da França é de alguma forma afetada pela proibição à burca – cerca de 2 mil mulheres. Quando andam na rua, dirigem automóveis, vão às compras ou apanham as crianças na escola, elas podem ser multadas em 150 euros. Os legisladores do país justificam que a lei é “para o bem das mulheres e da República”
“Na França não há lugar para a burca, não há lugar para a subjugação das mulheres”, afirmou em novembro de 2009 o então presidente Nicolas Sarkozy, que, de forma surpreendente, em vez de discutir subsídios à agricultura iniciou inesperadamente um debate sobre valores e identidade nacional. Na época, as eleições regionais se aproximavam, e ele estava atrás dos votos da extrema direita.
No mês de abril do mesmo ano, a Assembleia Nacional aprovou a controversa lei – com grande atenção da imprensa – e considerou a utilização do véu por motivos religiosos como passível de punição. Em seguida vieram as decisões sobre a multa às mulheres que não cumprirem a lei e da pena de um ano de prisão e punição de 35 mil euros aos homens que obrigarem suas mulheres e filhas a se cobrirem com o niqab ou a burca.
Ânimos exacerbados
Na aprovação, alguns parlamentares falaram em “igualdade” ou “dignidade”. Três anos depois, o desfecho ainda causa confusão. As prefeituras registraram até o verão de 2013 apenas 500 ocorrências – com frequência punindo várias vezes as mesmas mulheres. O milionário muçulmano Rachid Nekkaz chegou a financiar o pagamento das multas.
Ao mesmo tempo, representantes das associações de muçulmanos denunciam uma discriminação cada vez maior. Há casos de pessoas que tentaram tirar o véu das mulheres à força; de motoristas de ônibus que negaram a entrada de muçulmanas com burca; ou comerciantes que fecham suas portas a quem usa o véu de corpo inteiro.
“Cada um pode pensar o que quiser da lei, mas é preciso levar em conta os danos colaterais”, diz Marwan Muhammad, o representante de um grupo contra a “islamofobia” na França. Segundo ele, desde 2010 os casos de discriminação aumentaram significativamente. “Alguns cidadãos, sejam extremistas de direita ou de esquerda, se utilizam da lei de 2010 para justificar suas posições discriminatórias contra os muçulmanos.”
No entanto, do outro lado as reações também são cada vez mais exageradas. Policiais são muitas vezes atacados quando fazem os controles de rotina das mulheres de véu. Após protestos violentos em Nantes e Marselha no mês de julho, a situação se complicou ainda mais.
A polícia reagiu com gás lacrimogêneo às pedras atiradas e aos latões de lixo queimados pelos manifestantes – e a polêmica da burca voltou, assim, ao centro das atenções da mídia. Desde 2010, a aplicação da lei é destaque recorrente na imprensa francesa.
Processo inédito
Uma jovem francesa abriu um processo judicial contra o Estado. A Corte Europeia de Direitos Humanos em Estrasburgo deverá em breve decidir, em última instância, sobre a legalidade da proibição à burca.
Não se sabe muito sobre a jovem muçulmana de 23 anos, apenas que ela se mudou para o Reino Unido e que tomou essa atitude por vontade própria, sem qualquer pressão familiar. Seu advogado afirma que ela não está disposta a dar entrevistas. Nesta quarta-feira (27/11), haverá a primeira audiência do processo.
“Ela se baseia principalmente no artigo 8 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, que protege o direito à vida familiar e privada”, explica Patrick Titun, chefe de gabinete da Corte Europeia. “Ela reclama que não pode se vestir do modo que deseja, e vê nisso uma violação de sua vida privada.”
Para os juízes em Estrasburgo, a situação é inédita. “Casos como esse já existiam, mas eram todos formalmente inadmissíveis”, diz Titun. Mas além da questão da multa, há dúvida sobre qual seria o impacto da sentença no país com a maior comunidade muçulmana da Europa. A Bélgica, que também proíbe as vestimentas que cobrem totalmente o corpo, entrou como terceira parte no processo ao lado da França.
A antropóloga francesa Dounia Bouzar, especializada em legislação sobre símbolos religiosos, defende que a França está suficientemente preparada para, sem a presença da proibição à burca, resolver os problemas relacionados ao caso. Mas ela teme uma nova perseguição da imprensa aos muçulmanos na Europa.
“Isso já começa com o fato de que se fala da burca apenas como uma prática muçulmana”, diz Bouzar. “Esse é exatamente objetivo de alguns poucos sectários, que há alguns anos demandam a utilização da burca. Essa minoria quer enganar a opinião pública europeia, afirmando que a burca faz parte da fé muçulmana. Os políticos acabam ajudando os sectários, dando a eles mais importância do que realmente têm.” (DW)