(*) Maria Lucia Victor Barbosa –
No dia 8 de março quero uma rosa vermelha para enfeitar meus cabelos e me deixar mais faceira. Uma rosa que perfume minha feminilidade, que me inspire a descobrir nos confins da humanidade o porquê de minha essência e os mistérios que abrigo ao conter a maternidade.
E neste dia que é meu, que me deram de presente, quero um vestido rendado todo branco, imaculado, onde possa colocar entre frisos e babados a rosa vermelha orvalhada das lágrimas de outras mulheres que nunca foram felizes. Quem sabe assim eu pudesse resgatar-lhes a alegria.
Ah, neste dia que é das Marias de todo jeito e feitio, umas pobres, outras ricas, outras brancas de luar, outras tisnadas de ébano e aquelas orientais com seus olhinhos de amêndoa assim puxados para trás, não quero nem discursos nem palestras, nem queixumes, nem lamúrias, nem cantilenas, nem nada que seja falso mesmo que seja um poema.
Só quero meu alvo vestido, a minha rosa vermelha e quero descer a ladeira de outros séculos passados. Olhar nas brumas distantes, afastar véus e cortinas e me entrever sinhazinha na casa colonial de chão de tábuas corridas, de janelas de treliça por onde a rua espiasse e logo reconhecesse o trajeto tricotado com os novelos da história das mulheres brasileiras.
Na verdade muito espiei a partir daquele quadrado tão restrito e acanhado, mas do qual eu avistava um divertido planeta de onde um dia viria de maneira infalível e num cavalo montado o meu príncipe encantado, o namorado escolhido e por meus pais adotado.
Agora me vejo senhora. Tenho um senhor meu marido que me deram aos treze anos e me valeu sobrenome e muitos filhos bonitos que nem me deram trabalho porque Quitéria cuidou, deu seu leite, seu amor, enquanto eu ficava na rede me abanando de calor, engordando com os doces que me trazia Quitéria e pensando no domingo.
Domingo, que belo dia! É dia de sair, é dia do passeio esperado, de ver o mundo lá fora, o sol brilhando no espaço e me esquentando por dentro do espartilho apertado. De ir à missa bem cedo, de ouvir no campanário a melodia dos sinos. E de me jogar de joelhos nos degraus do confessionário. Que coisa melhor é esta de poder contar meus mistérios ao bom Padre Eleotério? Nem tanto por meus pecados que não são tão graves, mas sim de desabafar, pois o senhor meu marido anda para lá de esquisito. Vira e mexe aparece com um novo afilhado. E esses meninos morenos que brincam com meus lourinhos pondo toda a casa-grande em tremendo burburinho de onde brotam meu padre? Que fazer com essa minha ingenuidade?
“Faz nada não, minha filha. Isso é assunto de homem. Cuide de seus afazeres. Reze mais três rosários. Deus quis homem e mulher em destinos separados. O que o homem pode fazer nunca pense em repetir nem em seus sonhos sonhados, porque fazendo você Deus considera pecado”.
Agora venho de volta nessa ladeira do tempo subindo por cada século, sempre com a rosa vermelha e meu vestido rendado que arrasta pelo chão seus bordados delicados. A paisagem mudou. Vejo fábricas, lojas escritórios, lugares a fervilhar onde posso trabalhar se assim tiver vontade e o marido deixar. Vou a festas e teatros, além, é claro, da Igreja, onde rezo para Maria nossa rainha e padroeira. E a ela pergunto em vão: “Por que, minha Mãe, por que, ainda não veio permissão para a mulher receber bem mais alta educação?”
E a Santa a sorrir parecia me dizer: “Espera, minha filha, espera, que essas coisas hão de vir, mas nada vai lhe ser dado, é preciso conquistar, é necessário querer e sempre se paga um preço por aquilo a receber. Além do mais dobrará sua responsabilidade e muito cuidado com o que chamam de liberdade. Se dela não fizer bom uso, virá a liberalidade e isso jamais trouxe ao mundo a sonhada felicidade”.
Eis-me agora retornada das ladeiras da vida ao ponto de minha partida. Reparo, então, em coisas que antes não reparava. Há diplomas conquistados no universo feminino. E quantas mulheres vejo em cargos dos mais elevados. Por todas as partes estão, pois muito se obteve com trabalho e educação. Conquista, é bem verdade, que fez redobrar tarefas entre a chefia da empresa e as lides do fogão.
Outras dão continuidade apenas à tradição e ainda espiam o mundo das janelas de treliça. Esperam pelo domingo e o dia da procissão. Desconfiam do marido se ele chega atrasado.
E existem muitas daquelas que em nome da liberdade trazida por novos tempos, apenas se aviltaram e mais se coisificaram sem perceber as coitadas que liberdade é uma coisa que deve ser bem usada.
Tampouco há liberdade no tolo palavreado cavado sobre o abismo do machismo e do feminismo. Nem na falta de cavalheirismo ou mesmo de romantismo tidos como obsoletos, mas cuja falta frustra, pois relações que se prezam vêm mesmo é do coração.
No dia 8 de março quero uma rosa vermelha, um vestido branco e rendado que arraste pelo chão um leque bem delicado, levemente perfumado, um amor e uma canção.
(*) Maria Lucia Victor Barbosa é escritora e socióloga. (www.maluvibar.blogspot.com.br)