O 2 de novembro foi eleito pela Unesco como o Dia Internacional pelo Fim da Impunidade dos Crimes contra Jornalistas. Contudo, profissionais como Lúcio Flávio Pinto, que há 49 anos trabalha como repórter no Pará, têm pouco a celebrar. As reportagens de Lúcio denunciando corrupção, fraudes e esquemas de grilagem – uso de documentos falsos para a apropriação de terras públicas – na região amazônica já lhe renderam prêmios. E também dezenas de ações na Justiça, agressões físicas e ameaças de morte. Todas impunes.
“A ironia é que durante o regime militar fui processado só uma vez, e o caso foi arquivado. Desde 1992, num regime democrático, fui alvo de 33 processos com cinco condenações. O objetivo é me calar. Isso prova que vivemos numa democracia formal, mas não numa democracia real, já que os interesses de grandes grupos predominam sobre o interesse público”, diz o jornalista paraense, que há 28 anos edita quinzenalmente o “Jornal Pessoal” em Belém.
Ano eleitoral, 2014 foi violento para os jornalistas brasileiros. Perseguições, ameaças, assédio, intimidações e até assassinatos, sobretudo no Norte e no Nordeste, são rotina. Segundo a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), em 2014, três jornalistas foram assassinados e mais de uma centena sofreu algum tipo de agressão. Ao todo, foram 129 episódios de violência — menos que os 181 de 2013, mas os números enganam: foram assassinados, ainda, três radialistas e um blogueiro, crimes que não constam do número geral da violência contra jornalistas, já que tais profissionais não pertencem oficialmente à categoria.
Em 2014, 40 assassinatos no continente americano
E a impunidade predomina. Nove entre cada dez assassinatos de jornalistas no mundo não são esclarecidos, indica o relatório “Tendências Mundiais do Desenvolvimento da Mídia e da Liberdade de Expressão: foco digital especial 2015”, divulgado nesta segunda-feira (2), pela Unesco. Os números apontam que, entre 2014 e 2015, ao menos 40 jornalistas ou profissionais de comunicação foram assassinados somente nas Américas, segundo a Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
Brasil e México são os únicos representantes da América Latina em uma lista de 14 países, elaborada pelo Comitê para a Proteção de Jornalistas (CPJ), na qual os responsáveis por assassinatos de profissionais de imprensa permanecem livres. Somália, Iraque e Síria figuram no topo do Índice Global de Impunidade 2015.
Segundo o CPJ, o México aparece em oitavo lugar do ranking, com 19 homicídios não esclarecidos. E o Brasil manteve a 11ª posição, com 11 casos não elucidados. “Apesar de uma crescente melhora no histórico de condenações, a violência letal contra jornalistas segue superando a velocidade da justiça no Brasil”, pontua o relatório.
Para o chefe da organização Repórteres Sem Fronteiras na América Latina, Emmanuel Colombié, a situação é preocupante. “No caso do Brasil, com sua enorme extensão territorial, a Justiça não faz seu trabalho, e o tema da corrupção é central. Em áreas remotas, onde há tráfico de drogas e armas, as investigações de crimes contra jornalistas não acontecem porque acabam levando não só a todo tipo de delinquentes, mas também a políticos”, afirma.
“Floresta é questão econômica”, diz repórter
Muitos casos de violência sequer são informados. No Norte do país, denunciar crimes ambientais é tarefa das mais arriscadas. E foi uma série de artigos sobre a grilagem de 7 milhões de hectares – área equivalente ao território de Bélgica e Holanda juntas – em Tucuruí, na região do Vale do Xingu, que levou Lúcio Flávio Pinto ao banco dos réus pela última vez, há dois anos. Ele foi acusado de calúnia e difamação pela empreiteira que tentava se apropriar da área. A empresa jamais contestou as informações publicadas. Ainda assim, condenado, o repórter teve de recorrer ao crowdfunding na internet para indenizar o dono da companhia em R$ 28 mil.
“Chamar a atenção com denúncias de crimes ecológicos é simples. A questão ambiental tem muito eco aqui e no exterior, mas os brasileiros acham que a Amazônia é só conflito com a natureza, índios e questões sociais. Não entendem que a Amazônia foi a última região a ser integrada ao Brasil e, quando foi, já era internacionalizada. Ainda é. A opinião pública não compreende o valor real da Amazônia, com todos os atores, empresas e jogos de interesse envolvidos. A floresta é uma questão econômica”, diz Pinto à DW Brasil.
Polarização política acirra ameaças nas redes sociais
Outra voz influente da região amazônica, o jornalista acreano Altino Machado conhece bem o peso das ameaças. Nos anos 1990, chegou a ter seu carro alvejado e se viu obrigado a deixar a capital do estado, Rio Branco, após denunciar fraudes envolvendo políticos no antigo vestibular. Hoje, de volta à terra natal, tem um blog pessoal para publicar reportagens e teme a proliferação do discurso de ódio na internet.
“A atual polarização política dificulta o trabalho. Com as redes sociais, qualquer coisa que se escreva fica mais intensa, recebe críticas, reclamações e ameaças. Piorou muito. Tudo é recebido em extremos pelo grupo vermelho e, por outro lado, pelo grupo azul”, afirma Machado, referindo-se à ação de midiativistas que apoiam tanto o Partido dos Trabalhadores (PT) quanto a oposição, representada pelo Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB).
“É mais desafiador fazer jornalismo no interior do Brasil, pois a linha tênue que separa os donos de jornais do poder se mistura. Quanto mais longe dos grandes centros econômicos, mais a mídia é influenciada por coronéis e empresários que são também donos de veículos [de comunicação], prefeitos, deputados. Jornalistas da mídia tradicional se autocensuram por não poder tocar em assuntos que incomodam as elites, e os profissionais independentes, de blogs, se arriscam mais. É muito perigoso”, completa.
Chegar aos números reais desse tipo de crime é desafio não só no Brasil, mas no mundo inteiro. De acordo com a Unesco, apenas 24 dos 57 Estados-membros (42%) enviaram informações sobre casos de agressões a jornalistas em 2014 — um número baixo, mas quase o dobro dos 22% do ano anterior. (Deutsche Welle)