Os atos terroristas e o direito do consumidor

(*) Rizzatto Nunes

rizzatto_nunes_05Após os recentes atentados terroristas em Paris, muitas pessoas cancelaram suas viagens para lá, não só por causa do eventual perigo como também porque muitas das principais atrações locais estão (ou estavam) fechadas, tais como a Torre Eiffel, o Museu do Louvre etc. Passagens aéreas e reservas nos hotéis foram canceladas.

Eu ouvi, mais de uma vez, nas rádios, que as companhias aéreas estavam cobrando multas dos clientes que haviam cancelado as reservas, o que foi feito também pelos hotéis. Estes cobraram multas quando puderam ou simplesmente não devolveram as quantias que já haviam sido pagas. Incluo nesse rol de cancelamentos os passeios pré-agendados e pagos e todos os demais serviços que foram cancelados como consequência dos terríveis acontecimentos.

Pergunto: esses fornecedores podem ou poderiam cobrar multas e negarem-se a devolver os valores pagos previamente?

O tema, naturalmente, é o da responsabilidade civil e do inadimplemento contratual. Como se sabe, o sistema de responsabilidade civil no Código de Defesa do Consumidor foi estabelecido tendo por base a teoria do risco da atividade: o empresário tem a liberdade de explorar o mercado de consumo e, nessa empreitada, na qual almeja o sucesso, assume o risco do fracasso. Ou em outras palavras, ele se estabelece visando ao lucro, mas corre o risco natural de obter prejuízo. É algo inerente ao processo de exploração (não abordarei os casos de monopólio e até oligopólios, nos quais o risco de perda são muito pequenos, o que, claro, não elimina a responsabilidade de mesma base legal).

O risco tem relação direta com o exercício da liberdade: o empresário não é obrigado a empreender; ele o faz porque quer; é opção dele. Mas, se o faz, assume o risco de ganhar ou de perder e, por isso, responde por eventuais danos que os produtos e serviços por ele colocados no mercado possam ocasionar, algo, aliás, inevitável, pois é impossível oferecer produtos e serviços em larga escala sem que algum problema surja.

Decorre disso que, quem se estabelece deve, de antemão, bem calcular os potenciais danos que irá causar não só para buscar evitá-los, mas também para calcular suas perdas com a composição necessária dos prejuízos que advirão da própria atividade. Quer dizer, o empreendedor não pode alegar desconhecimento, até porque faz parte de seu mister. Por exemplo, se alguém quer se estabelecer como transportador terrestre de pessoas deve saber calcular as eventuais perdas que terá em função de acidentes de trânsito que fatalmente ocorrerão.

O CDC, fundado na teoria do risco do negócio, estabeleceu, então, para os fornecedores em geral, a responsabilidade civil objetiva (com exceção do caso dos profissionais liberais, que respondem por culpa). O transportador, o administrador hoteleiro e os prestadores de serviços em geral estão enquadrados no art. 14 do CDC, cujo § 3º cuida das excludentes de responsabilidade (na verdade, tecnicamente, regula as excludentes do nexo de causalidade). São elas: a) demonstração de inexistência do defeito (inciso I) e b) prova da culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro (inciso II).

Vê-se, portanto, que a lei consumerista não coloca como excludente do nexo de causalidade o caso fortuito e a força maior (aliás, nem poderia porque essas excludentes têm relação com a culpa) (i). Admite-se apenas a excludente de responsabilidade do caso fortuito externo (o que vale, diga-se, para todos os setores da atividade empresarial).

A força maior e o caso fortuito interno não podem ser antecipados (apesar de possíveis de serem previstos no cálculo) pelo fornecedor, nem por ele evitado. E não elidem sua responsabilidade. É o caso, por exemplo, do motorista do ônibus que sofre um ataque cardíaco e com isso gera um acidente: apesar de fortuito e inevitável, por fazerem parte do próprio risco da atividade, não eliminam o dever de indenizar.

Mas, quando se trata de fortuito externo, está-se fazendo referência a um evento, caso fortuito ou força maior, que não tem como fazer parte da previsão pelo empresário na determinação do seu risco profissional. Cito o conhecido exemplo do vulcão. A erupção de um vulcão é típica de fortuito externo porque não pode ser prevista. O mesmo se dá em caso de terremoto ou maremoto. E, também com um ataque terrorista.

Desse modo, no caso dos ataques de Paris, por causa dessa excludente, as companhias aéreas não respondem pelos atrasos e cancelamentos forçados em função do fechamento dos aeroportos.

Acontece que o fortuito externo atinge a relação jurídica de consumo nos dois polos: no do fornecedor e no do consumidor. Se é verdade que o fornecedor não pode ser responsabilizado por causa do evento, do mesmo modo o consumidor não pode ser apenado se não puder – ou desistir – usufruir do serviço encomendado previamente. Essa situação excepcional faz nascer um direito no polo de consumo. Os cancelamentos que envolveram e envolvem as estadias nos hotéis, flats, pousadas e demais ofertas de hospedagem, o transporte aéreo, e também o terrestre e marítimo, os traslados terrestres, os passeios previamente contratados etc. não podem implicar em ônus para os consumidores.

Repito para concluir: em função do fortuito externo, de um lado, os fornecedores não podem ser responsabilizados e, de outro, os consumidores também não podem ser prejudicados.

(*) Luiz Antônio Rizzatto Nunes é professor de Direito, Mestre e Doutor em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP); Livre-Docente em Direito do Consumidor pela PUC-SP e Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo.

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