STF: presunção de inocência e prisão em segunda instância; trânsito em julgado e garantismo às favas

(*) Ucho Haddad

ucho_24No Brasil, infelizmente, há algum tempo o conceito de justiça confunde-se com o pé de cabra. Pelo menos é assim que exige uma sociedade ensandecida com os desdobramentos do Petrolão. De igual modo, ter opinião no Brasil é crime, ser coerente, sacrilégio. Fazer jornalismo com base na realidade e na verdade dos fatos é profanar o novo status quo instalado no País.

Sendo assim, às vezes questiono-me sobre o quanto vale a pena escrever de maneira tão dedicada, sincera e honesta para quem não compreende o que é escrito, para quem limita-se a ler o título de determinada matéria jornalística e a partir dele chegar a uma conclusão que passa longe da verdade. Por isso muitas vezes pergunto-me se não chegou a hora de parar, quiçá de mudar o objeto da escrita. Chega a ser enfadonho escrever com a tinta da coerência e, do nada, tornar-se alvo de críticas infundadas, que em vez de esclarecer os fatos ou abrir o diálogo apresentam-se como pinceladas “torquemadistas”.

Permito-me neste artigo, diante do exposto, o direito de valsear entre a informalidade, a interpretação coerente e realista dos fatos e a tecnicidade jurídica. Pode ser esta a derradeira tentativa de mostrar à sociedade a importância de, abrindo mão do imediatismo a qualquer preço, pensar o País no longo prazo e sob o manto da legalidade e do respeito à ordem democrática. Faço isso porque um trecho conclusivo de matéria sobre a decisão do STF, de minha autoria, valeu-me ofensas desnecessárias, muitas delas oriundas de pessoas que creem ser a versão moderna e tropical de Aladim.

As ofensas partiram daqueles que dizem defender o fim da impunidade, o combate implacável à corrupção. Dos que creem ser a decisão do Supremo a pá de cal sobre os protagonistas da maior roubalheira de que se tem notícia. Ao contrário, os malandros do Petrolão estão sendo beneficiados pelos acordos de delação premiada, os quais reduzem a quase nada penas restritivas de liberdade que deveriam ser longevas. Custeiam caros e badalados advogados com o dinheiro roubado, que também serve para honrar a multas pecuniárias impostas pela Justiça. Passam alguns parcos meses atrás das grades, mas depois ficam em casa a desfrutar do produto do crime. Vivem como nababos na esteira do tilintar do butim. Afinal, desviou-se montante que passa dos R$ 30 bilhões, mas o povo faz festa diante da recuperação de pouco mais de 5% do valor surrupiado em uma década.

Ao longo de 28 anos, o princípio da presunção da inocência – estabelecido no artigo 5º, inciso LVII da Constituição Federal – foi aceito passivamente pela sociedade, que até então sequer se importava com a demora criminosa do Judiciário na tomada de decisões. O tema [presunção de inocência] continuaria no limbo jurídico não fosse a Operação Lava-Jato. E a corrupção continuaria correndo solta não fosse a denúncia que provocou a investigação que, por sua vez, desmontou o esquema criminoso que agrupou impressionante número de meliantes e fez desparecer valores inimagináveis.

No momento em que a Operação Lava-Jato ganhou as ruas do País, levando para a cadeia os protagonistas da roubalheira que derreteu os cofres da Petrobras e de outras estatais, aparentemente o brasileiro acordou. E desde então tudo precisa ser resolvido a fórceps, como se as garantias fundamentais fossem letra morta. Porque foram desatentos ontem, os cidadãos querem hoje resolver tudo às pressas, sem pensar nas consequências que marcarão o amanhã.

Em votação que produziu placar apertado (6 a 5), o Supremo Tribunal Federal decidiu manter o entendimento que permite a imediata execução de pena a partir de sentença criminal condenatória proferida em segunda instância. Isso fere a Constituição, lei máxima e intransponível. Nenhum princípio constitucional reina absoluto, mas é preciso cuidado extremo ao patrocinar interpretações semânticas e definir mudanças. O resultado da votação mostrou de forma clara que prevaleceu o dissenso, apesar do resultado favorável à manutenção do entendimento.

Repentinamente, o “vale tudo” parece ter tomado conta do País, levando os cidadãos a cobrarem medidas que nem sempre são incensadas pela lógica. Alguém há de alegar que corruptos devem apodrecer atrás das grades, mas até outro dia esse assunto – a corrupção – não despertava tanto interesse. Aliás, alguns políticos ganharam fama – e tornaram-se folclóricos – na esteira do “rouba, mas faz”. Ou seja, o endurecimento da lei, eventuais mudanças e os malabarismos interpretativos dependem de quem está na cena do crime.

Um povo transforma-se em nação quando aceita existir de forma organizada, debaixo de um conjunto legal e de estrutura jurídica que, como carrancas da cidadania, devem ser respeitados sem direito a condicionantes. No momento em que a Constituição Federal de 1988, batizada de Constituição Cidadã, foi promulgada, ficou tácito que a sociedade brasileira concordava com o que nela está disposto. E isso se deu por meio dos deputados constituintes, porque a democracia brasileira é representativa.

Em países desenvolvidos, a prisão de um condenado se dá após vencido o duplo grau de jurisdição, conceito recepcionado com galhardia pelos defensores dos direitos humanos e do amplo direito de defesa. Assim deveria ser no Brasil, mas alguém decidiu ser piegas em termos democráticos e enxertou essa aberração jurídica na Carta Magna. O Supremo Tribunal Federal deveria limitar-se à missão de proteger a Constituição e garantir a sua aplicabilidade, não cabendo nessa tarefa análises prosaicas que atentam contra a essência da Carta.

É lamentável, porém necessário, admitir que o Supremo transformou-se, com o passar dos anos e o avanço da sensação de impunidade, em tribunal recursal de pendengas criminais que têm como protagonistas pessoas com poder político ou financeiro. Não é esse o papel de uma Suprema Corte, pelo contrário.

Seria uma acintosa violação ao bom senso negar que a “indústria de recursos judiciais” funciona com um olho voltado para a prescrição. Mas esse quase incesto jurídico só prosperou porque a Justiça é lerda e paquidérmica. Tal morosidade abriga-se em legislação complexa e cheia de atalhos, os quais são produzidos de forma quase proposital para beneficiar os legisladores.

Faz-se necessário estabelecer o que é justo e o que é legal. Nem sempre o que é justo é legal, mas o reverso na maioria das vezes caminha na trilha da justeza. Hoje a sociedade brasileira está propulsada pelos desdobramentos da Operação Lava-Jato, porém é preciso pensar no amanhã. Apenas porque a operação que implodiu o Petrolão um dia há de acabar, assim como em algum momento os corruptos deixarão o cárcere. Não importa se alguns morrerão enjaulados ou se outros não saberão como levar a vida quando reconquistarem a cara e preciosa liberdade.

Na verdade, o que importa de fato é refletir sobre os efeitos colaterais de uma mudança na lei que se deu sob o clamor popular, mas entalhada com o cinzel da retórica jurídica de ocasião. A sociedade quer punição exemplar aos corruptos do Petrolão – é justo e legal –, assim como exige que isso ocorra de qualquer forma e com rapidez meteórica. Não é assim e nesse ritmo que as coisas acontecem, principalmente no Judiciário.

No escopo da própria Operação Lava-Jato, mantra definitivo de uma sociedade preguiçosa em termos políticos, há exemplos claros que confirmam não ser essa a sequência dos fatos. Sérgio Machado, um dos saqueadores da Petrobras, apropriou-se indevidamente de imunda fortuna, mas, a reboque de delação rascunhada sobre a perna e homologada às pressas, está a cultivar o ócio em sua luxuosa mansão. Não obstante, Machado acordou com a força-tarefa da Lava-Jato a devolução do dinheiro roubado de forma parcelada. Em outras palavras, piada pronta da pior qualidade, sem que a sociedade tenha reagido à altura do absurdo.

No que tange a morosidade secular da Justiça brasileira, Renan Calheiros é a esfinge da hipocrisia que embala o País. Alvo de várias acusações de corrupção, Renan está prestes a tornar-se réu no caso das “vacas sagradas”, escândalo que versa sobre o pagamento das despesas da amante e que está sob a responsabilidade do Supremo. Resumindo, um delinquente político contumaz e conhecido é presidente de um dos Poderes da República, dá as cartas como bem entende e goza do direito de indicar ministros e cobrar outros cargos.

Por certo surgirão os que creem que a decisão do Supremo decretará o fim da farra, mas não é verdade. A manutenção do entendimento que permite a prisão do condenado em segunda instância nem de longe alcançará essa casta imunda da sociedade, que sempre se apresenta ao juízo nos braços de caríssimos advogados, especialistas em chicanas jurídicas que visam a procrastinação processual.

Por enquanto, o que se vê no País é o endeusamento dos que estão a denunciar, prender e condenar os partícipes do Petrolão (e fazem bem). Os agentes do Estado, por dever de ofício, devem agir como agem os integrantes da força-tarefa, como age o juiz federal Sérgio Moro. Em suma, não podem fugir ao cumprimento das respectivas obrigações funcionais.

Corruptos e corruptores serão punidos de acordo com o que determina a legislação vigente, nada além disso. A Lava-Jato e o Petrolão hão de passar. A vida há de continuar, o Brasil há de avançar. Como herança ficará a decisão tomada pelo STF. Hoje ficou decidido ser possível a prisão a partir de sentença criminal condenatória de segunda instância. Amanhã haverá outra decisão, sabe-se lá se em consonância com anseios da sociedade de então, caso não fique patente o exercício arbitrário da própria razão.

Mantenho minha posição firme de combate incansável à corrupção, pois do contrário jamais teria enfrentado com resiliência as muitas agruras decorrentes da decisão de denunciar o esquema criminoso conhecido atualmente como Petrolão. De forma idêntica mantenho minha convicção de que é preciso punir os corruptos, passivos e ativos, com a dureza da lei, mas dentro da lei. Como defensor do Estado Democrático de Direito, sou adepto convicto do garantismo. O que significa ser garantista?

Em 2012, ao ser sabatinado no Senado Federal, antes de assumir cadeira no Supremo Tribunal Federal, o ministro Teori Zavascki não deixou dúvidas sobre o que é ser garantista, quando questionado pelo senador Alvaro Dias (PV-PR). “Se ser garantista é assegurar aquilo o que está na Constituição, eu sou garantista, eu acho que todos devem ser garantistas. Mas o problema não é o rótulo, e sim saber como se interpreta a Constituição”, disse o catarinense Zavascki.

Depreende-se da pretérita afirmação do ministro Teori Zavascki que, no âmbito do Judiciário brasileiro, o garantismo só existe depois da interpretação individual do que deveria ser a máxima lei da nação. E isso está longe de ser garantismo. Traduzindo para o idioma da Botocúndia, Zavascki, um respeitável magistrado, é garantista, “pero no mucho”.

Na obra “Direito e razão: Teoria do Garantismo Penal”, o jurista italiano Luigi Ferrajoli, um dos mais conceituados garantistas, discorre sobre o tema e oferece aos leitores definições de garantismo. A primeira definição, excepcionalmente precisa, retrata um modelo normativo de Direito – em especial no âmbito do Direito Penal – que sob a ótica política apresenta-se como “uma técnica de tutela idônea a minimizar a violência e a maximizar a liberdade e, sob o plano jurídico, como um sistema de vínculos impostos à função punitiva do Estado em garantia dos direitos dos cidadãos”.

A segunda definição, destaca Ferrajoli, estabelece “uma teoria jurídica da validade e da efetividade como categorias distintas não só entre si, mas, também, pela existência ou vigor das normas.” Em outro trecho do livro, o jurista italiano afirma que “o garantismo opera como doutrina jurídica de legitimação e, sobretudo, de perda da legitimação interna do direito penal, que requer dos juízes e dos juristas uma constante tensão crítica sobre as leis vigentes”.

Em sua terceira definição, Luigi Ferrajoli afirma que o garantismo “designa uma filosofia política que requer do direito e do Estado o ônus da justificação externa com base nos bens e nos interesses dos quais a tutela ou a garantia constituem a finalidade”.

Voltando à afirmação do ministro Teori Zavascki, vociferada há exatos quatro anos diante dos senadores que à época integravam a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, mas atendo-se aos ensinamentos de Luigi Ferajoli, ser garantista é não apenas assegurar o que dispõe a Carta Magna, mas ser fiel, incondicionalmente, aos chamados princípios fundamentais da legalidade estrita, da presunção de inocência, do contraditório, do devido processo legal e do amplo direito de defesa.

Analisadas as reações favoráveis à decisão do Supremo, muitos dirão que do jeito que estava não era bom para o País. Por isso muda-se o que está estabelecido na Constituição, que não é qualquer papeleta de botequim, quando a lei é que deveria ser objeto de mudança, como um todo. Mas surgirão alegações de que é preciso mudar a Constituição, ou até mesmo fazer uma nova. Mãos à obra!

Enquanto comemoram a decisão do Supremo, os entusiastas da causa deveriam gastar voz e saliva para cobrar a sonhada ligeireza do Judiciário e o fim imediato do foro especial por prerrogativa de função, o chamado foro privilegiado, que permite aos bandoleiros com mandato encarar o Brasil como reles casa de alterne.

A democracia brasileira é jovem e ainda engatinha, mas a sanha popular pode colocar tudo a perder. O Brasil é uma barafunda desde os tempos da Terra de Vera Cruz, mas a solução dos problemas verde-louros, na visão dos afoitos, está no afastamento de Dilma Rousseff e na prisão de Lula. Não que esses dois fatos sejam órfãos de necessidade e importância, pelo contrário, mas Dilma e Lula passarão, enquanto o Brasil terá de seguir seu caminho por muito tempo. E isso só será possível mediante o respeito às leis e à ordem democrática. O que não está bom precisa ser mudado, é claro, contudo isso deve ocorrer dentro da legalidade (Lex scripta). Do contrário, viva o faroeste caboclo!

(*) Ucho Haddad é jornalista político e investigativo, analista e comentarista político, cronista esportivo, escritor e poeta.

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