(*) Ucho Haddad
A morte do tunisiano Anis Amri, 24 anos, suspeito de ser o responsável pelo atentado terrorista em Berlim, em 19 de dezembro, encerra mais uma caçada humana na Europa. Contudo, abre uma brecha para discutir-se a questão dos refugiados que – deixando para trás miséria, guerras e violência – buscam no Velho Mundo uma oportunidade de viver de forma minimamente digna e em paz.
A dificuldade enfrentada pelas autoridades alemãs na fracassada operação para prender o terrorista deixou claro que o problema não está em acolher refugiados, mas na segurança pública e na inteligência de Estado, tema que tratei com antecedência, ao contrário do que fizeram importantes veículos da imprensa global.
Sou declarada e assumidamente a favor da concessão de asilo a pessoas que abandonam a terra natal em busca de sobrevivência, pois só quem já enfrentou a necessidade de fuga em meio à miséria e à guerra é capaz de compreender o que isso representa na vida do ser humano.
Muito antes de a crise migratória instalar-se na Europa, afirmei que, em concomitância à recepção aos asilados, era preciso adequar a estrutura estatal dos países envolvidos nesse processo para que nada desse errado ou, então, para minimizar a possibilidade de erro. Entre estar diante de um computador a escrever e colocar a mão na massa há uma enorme distância, reconheço, mas era primordial traçar um plano para alinhar as diversidades culturais. Até porque, se usos e costumes são diferentes de uma cidade para outra, que dirá de uma nação pobre para outra rica, de um país castrador para outro liberal.
Receber refugiados é um gesto de solidariedade sem precedentes, mas quando isso acontece não se pode escolher a quem dar refúgio, desde que respeitadas algumas regras. O que foi possível perceber após o atentado na Breitscheidplatz (Praça Breitstcheid), na porção ocidental da capital alemã, foi o acirramento da intolerância. Aumentou de forma exponencial a crença burra de que todo seguidor do Islã é terrorista. Em qualquer nação, quando um crime acontece, o fora de lei não é relacionado à determinada religião. Simplesmente é rotulado como criminoso.
Para piorar o cenário, nos últimos dias ganhou força a teoria esdrúxula de que todo árabe é a “fulanização” do perigo extremo, supostamente porque esses são adeptos do Islamismo. Há árabes muçulmanos, mas há árabes não muçulmanos. Com o intuito de aclarar o assunto, lembro que apenas um terço dos muçulmanos existentes ao redor do planeta é de origem árabe. A Indonésia, por exemplo, é o país com o maior número de muçulmanos – dos 250 milhões de habitantes, 90% são seguidores do Islamismo.
Se o perigo iminente tivesse alguma relação com o Islã, a Alemanha, assim como muitos países europeus, já teria ido pelos ares. Em território alemão há pelo menos 9 milhões de muçulmanos, os quais sentem na pele a discriminação, mas não reagem como sugerem os intolerantes.
O caráter seletivo da psique humana faz com que alguns muçulmanos sejam mais aceitos que outros, dependendo da fama e da popularidade dos mesmos. E esse tipo de condicionamento é no mínimo condenável.
O alemão Mesut Özil, jogador de futebol que atualmente defende o Arsenal, é de origem turca e muçulmano, mas nem por isso é desrespeitado. O francês Karim Benzema, atacante do Real Madrid e de origem argelina, é muçulmano, mas goza do respeito de todos. Técnico do Real Madrid, o francês Zinedine Zidane tem origem argelina e é muçulmano, sendo incensado por onde passa. Volante do Manchester City, o marfinense Yaya Touré é muçulmano. Atacante da Roma, o bósnio Edin Džeko é muçulmano.
Quem não parou o que estava fazendo para admirar o “balé” do pugilista Mohammad Ali-Haj, nascido Cassius Marcellus Clay Jr? Quem não se encantou com as cestas de Kareem Abdul-Jabbar, jogador de basquete norte-americano que estreou na vida como Ferdinand Lewis Alcindor, Jr.? Quem, nos anos 70 e 80, não namorou ao som das músicas de Yusuf Islam, o Cat Stevens? Quem nunca ouviu um discurso de Al Hajj Malik Al-Shabazz, mais conhecido como Malcolm X e nascido Malcolm Little?
Os jihadistas do chamado Estado Islâmico são delinquentes que apropriaram-se indevidamente do Islã para dar ares de legalidade a um movimento tão violento quanto criminoso. Os integrantes do grupo matam a esmo e de forma violenta e premeditada não porque são muçulmanos, mas porque são terroristas. Qualquer criminoso pode ter sua religião – pode também ser ateu ou agnóstico –, mas não tem o direito de usá-la como justificativa para seus atos.
Alguém há de dizer que Osama Bin Laden era árabe, muçulmano e terrorista. É fato, não há como negar. Contudo, na lista dos piores terroristas de todos os tempos constam o ucraniano e judeu Ze’ev Jabotinsky, então chefe supremo da Irgun Zvai Leumi (Organização Nacional Militar), que usou a violência na tentativa de criar um Estado judeu-facista na Palestina; o acupunturista japonês Shoko Asahara, fundador do “Ensinamento da Verdade Suprema” e responsável pelo ataque ao metrô de Tóquio com gás Sarin; o ex-fuzileiro naval norte-americano Timothy McVeigh, que matou 168 pessoas em atentado terrorista levado a cabo na cidade de Oklahoma; o matemático e ativista político norte-americano Theodore Kaczinsky, o Unabomber, que matou dezenas de pessoas vítimas de suas cartas-bomba; o basco Jose Antonio Bengoetxea, conhecido como Josu Ternera, líder máximo do grupo extremista ETA; o colombiano Manuel Marulanda Vélez, o Tirofijo, fundador e líder maior das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC); o peruano Abimael Guzmán Reynoso, fundador e líder do grupo Sendero Luminoso; o irlandês Michael Collins, idealizador e fundador do violento e radical IRA; o venezuelano Illich Ramírez Sánchez, conhecido como “Carlos, o Chacal”, sequestrou onze ministros da OPEP e deixou dezenas de mortos e feridos em atentados em Paris. Exceto Osama Bin Laden, nenhum dos citados era muçulmano.
Em suma, não há terrorismo islâmico, assim como não há beijo gay, abraço hétero, amor homoafetivo, fé cristã e solidariedade evangélica. E assim por diante… Terrorismo, beijo, abraço, amor, fé e solidariedade são exatamente o que as respectivas palavras significam. Sem necessidade de adjetivações esdrúxulas. Qualquer adereço interpretativo é fruto da ignorância e da intolerância, longe dessa ou daquela religião.
Não importa se Mohammad Ali ou o Abdullah da esquina, não importa se Zinedine Zidane ou o Youssef da “lojinha” do bairro. Árabes ou não, muçulmanos são seres humanos que gozam da liberdade da crença e do direito à fé. E como tal devem ser respeitados.
Os adeptos da violência – física, verbal ou intelectual –, em especial os terroristas, têm o meu repúdio e desprezo. Os homens e mulheres de bem, seguidores do Islã, terão sempre o meu incondicional apoio. Cristão que faz da diversidade humana a razão de existir, sou defensor ferrenho da paz.
Aos que nos últimos tempos têm experimentado a essência odiosa da intolerância, Salaam Aleikum. Aos intolerantes, que creem ser o Ocidente endereço da única receita de vida, “que a paz de Deus esteja com vocês”. Em árabe, no idioma da Terra Brasilis ou em qualquer outro, o meu desejo é o mesmo.
(*) Ucho Haddad é jornalista político e investigativo, analista e comentarista político, cronista esportivo, escritor e poeta.