Boate Kiss: vamos esperar outra tragédia em vez de corrigir a lei?

(*) Rizzatto Nunes

rizzatto_nunes_05No dia 27 de janeiro passado, fez quatro anos da tragédia da boate Kiss na cidade de Santa Maria, que matou 242 pessoas e deixou outras doentes e com sequelas até hoje. Como sempre acontece, logo após a desgraça, autoridades e políticos vieram a público para dizer que tudo mudaria, novas normas seriam aprovadas e que algo assim não voltaria a acontecer. Mas o noticiário da imprensa dos últimos dias demonstrou que, de fato, pouca coisa mudou. No máximo, o que se viu foram alguns donos de boates mais preocupados com segurança – especialmente em relação ao fogo. Lei nenhuma foi alterada ou promulgada.

Como já tive oportunidade de referir, um modo de proteger os frequentadores desse tipo de estabelecimento é fazendo algumas alterações no Código de Defesa do Consumidor – CDC. Isso porque as normas atualmente vigentes não dão conta de protegê-los.

Um dos grandes problemas da questão é o da aglomeração de pessoas e da dificuldade de deixar o local de forma rápida e segura. Enquanto for permitido o uso de comandas e o controle na saída somente após o pagamento do consumo, de nada irá adiantar uma fiscalização prévia contra incêndios. No dia de funcionamento regular, continuará havendo uma única saída ou mesmo mais de uma; todavia, sempre bloqueada, aguardando os pagamentos pelos usuários-consumidores. Lembro que, no evento de Santa Maria, ficou demonstrado que se as normas já existentes tivessem sido cumpridas, a tragédia poderia ter sido evitada, mas desde que a saída fosse facilitada.

Não sei dizer se em todo lugar existe esse tipo de restrição na saída. No entanto, é evidente que a dificuldade imposta para a saída que coloca os consumidores em filas estreitas, está ligada ao interesse do faturamento. O empresário tem mesmo direito de receber, mas nunca, por causa disso, abrindo mão de manter o sistema de segurança funcionando rigorosamente.

E há, ainda, uma outra pergunta: será mesmo legal criar filas infernais e desconfortáveis para cobrar o consumo de centenas de pessoas ao mesmo tempo, impedindo que elas deixem o estabelecimento comercial na hora em que quiserem sair? Tem cabimento obrigar a que se fique 20, 30 minutos ou mais esperando para poder deixar o local?

No caso da boate Kiss, as reportagens apresentaram na época do acidente o depoimento de uma jovem que disse que foi impedida por seguranças de deixar o local porque ela antes deveria pagar a consumação. E o lugar estava em chamas!

Realmente, as filas enfrentadas por consumidores para sair de muitas boates são terríveis e tomam muito tempo. E, infelizmente, as regras vigentes do CDC não impedem o uso das comandas e a multiplicação perigosa das filas.

Por isso, insisto que é o caso de se aprovar uma norma que proíba especificamente que boates e similares se utilizem desse método abusivo contra seus clientes. Basta a inserção de novos incisos no art. 39 do CDC.

Esse modo de cobrança não é utilizado em vários lugares do planeta. Em algumas boates do Canadá e Estados Unidos, por exemplo, quem compra bebida ou comida paga na hora e sai do local quando bem entender, sem mais delongas.

Desse modo, não só se respeita o consumidor, como adicionalmente cria-se uma condição de segurança: o dono do estabelecimento sempre deixará destrancadas saídas de emergência, eis que não ficará com medo de que seus devedores deixem o estabelecimento. Se eles forem embora não haverá problema, pois já pagaram. É uma forma de usar a lógica do mercado capitalista a favor do consumidor para garantir sua incolumidade física .

Daí que pode e deve não só a autoridade administrativa, mas também a autoridade policial, determinar o esvaziamento da boate, clube ou congênere sempre que verificar que ele esteja com lotação acima de sua capacidade e/ou sem condições de segurança adequadas.

Em função disso, apresento mais uma vez minha sugestão: a da introdução de um outro inciso no artigo 39 do CDC, para permitir o controle da capacidade e lotação do estabelecimento pelo próprio consumidor.

Eis, pois, abaixo minha proposta que, penso, tem tudo de benéfica aos consumidores e não prejudica os negócios e interesses dos empresários do setor. Lembro que a alteração pode ser feita pelo Legislativo ou pela Presidência da República, por intermédio de Medida Provisória.

*****

Eis minha proposta:

Projeto de Lei ou Medida Provisória (Para ficar claro, transcrevo o “caput” do art. 39)

Art. 1º – O art. 39 da Lei nº 8.078, de 1990 que “Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências”, passa a vigorar com a seguinte redação e o parágrafo único de seu artigo 39 fica renumerado para parágrafo 1º:

Art. 39 É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas:

XIV – Utilizar em boates, clubes e estabelecimentos similares, cartões de controle de consumo, tais como comandas, cartões ou fichas de consumação, cartões magnéticos etc.

XV – Restringir em boates, clubes e estabelecimentos similares ou de qualquer modo impedir ou dificultar a saída do consumidor no momento em que este desejar.

XVI – Permitir o ingresso em boates, clubes e estabelecimentos similares de um número maior de consumidores que o fixado pela autoridade administrativa como máximo.

Parágrafo 2º – A cobrança do consumo em boates, clubes e estabelecimentos similares, conforme regrado no inciso XIV será feita no ato da entrega do produto.

Parágrafo 3º – Para fins de controle pelo consumidor, na hipótese do inciso XVI, o número máximo de pessoas permitidas no local, conforme determinado pela autoridade administrativa, será afixado em cartaz visível e iluminado na entrada do estabelecimento, seguido do número do telefone da autoridade de fiscalização e da Delegacia de Polícia locais. Os caracteres serão ostensivos e o tamanho da fonte não será inferior ao corpo 72 do tipo conhecido como “Times News Roman”.

*****

(i) Seria um reforço ao próprio Código Penal, que define o crime de perigo nesses termos: “Art. 132 – Expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente: Pena – detenção, de três meses a um ano, se o fato não constitui crime mais grave. Parágrafo único. A pena é aumentada de um sexto a um terço se a exposição da vida ou da saúde de outrem a perigo decorre do transporte de pessoas para a prestação de serviços em estabelecimentos de qualquer natureza, em desacordo com as normas legais”.

(*) Luiz Antônio Rizzatto Nunes é professor de Direito, Mestre e Doutor em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP); Livre-Docente em Direito do Consumidor pela PUC-SP e Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo.

apoio_04