Muitos dizem que o Brasil chegou ao fim, mal sabem que nem começou

(*) Ucho Haddad

O Brasil vive um momento extremamente perigoso e que causa preocupação, pois a sociedade decidiu adotar a Lei de Talião – do olho por olho, dente por dente – como referência existencial. Um povo só transforma-se em nação a partir do momento em que aceita existir debaixo de um conjunto legal. Sem essa condição primordial, a de respeito intransigente à legislação, cujo ápice é a Constituição, volta-se à Idade da Pedra, quando decisões eram tomadas de acordo com o humor do ser humano.

Reza a Carta Magna brasileira em seu artigo 5º, inciso XXXVI, que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Isso denota que todo cidadão deve ser tratado pelo Estado com isonomia, no âmbito dos direitos ou das obrigações. Do mesmo modo, a igualdade de tratamento deve prevalecer diante da aplicação da lei. Em um país que engatinha em termos de democracia, como é o caso do Brasil, a aplicação da lei, infelizmente, depende do “cliente” ou da boa vontade dos juízes. Talvez seja refém da capacidade do cidadão de custear um advogado mais ou menos badalado. E nesse ponto a democracia deixa de ser o que deveria ser.

Quando direitos são violados a partir deste prisma, a democracia corre um sério risco de desmoronar a qualquer momento. Diferentemente do que pensa a extensa maioria dos brasileiros, democracia não é apenas e tão somente o modelo de governança em que o povo exerce a soberania. Democracia é ter garantia à liberdade, mas, acima de tudo, assumir responsabilidades, como, por exemplo, tratar o próximo como um cidadão e em igualdade de condições. A grande questão está em compreender o que é cidadania, algo que há muito a população desconhece o significado. Talvez porque o mundo evoluiu com excesso de rapidez, talvez porque o ser humano tenha se apequenado em sua própria essência.

Em fevereiro passado, quando o ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), concedeu habeas corpus a Bruno Fernandes de Souza, ex-goleiro do Flamengo, a sociedade reagiu negativamente. Mello cumpriu o que determina a legislação vigente, sem qualquer deslize, mas a população entendeu que Bruno deveria mofar na cadeia, mesmo diante do escândalo em que se transformou a morosidade da Justiça. Não se trata de afirmar que o goleiro é inocente, como também não cabe dizer que é culpado, mas a lei garante ao réu o direito de recorrer em liberdade.

Ademais, a Constituição estabelece também no artigo 5º, inciso LVII, que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” Ou seja, até a confirmação da sentença condenatória o atleta deveria ser considerado inocente, pois instâncias superiores da Justiça podem reformar a decisão. Mas não é isso que acontece no Brasil.

Nesta terça-feira (25), no embalo da repercussão do caso nas redes sociais e da indignação popular, a 1ª Turma do STF decidiu que Bruno deve retornar à prisão e aguardar julgamento de recurso impetrado no Tribunal de Justiça de Minas Gerais. A decisão foi tomada com base em recurso apresentado pela mãe de Eliza Samudio, que por meio de advogados alegou que a liberdade do goleiro representava uma séria ameaça à sua segurança e integridade, assim como de seu neto (filho do atleta).

O ministro Luiz Fux, integrante da 1ª Turma, deu um voto colérico a favor da derrubada do habeas corpus, como se Bruno Fernandes fosse a “fulanização” do perigo que ronda a sociedade verde-loura. A Justiça, cumprindo o que determina a lei, vem liberando presos perigosíssimos de forma continuada, sem que o cidadão sequer se incomode com as decisões. Possivelmente porque o brasileiro não se interessa pelas coisas do Estado, enquanto, no contraponto, consome apenas o que é alardeado pelos meios de comunicação.

Uma sociedade só pode ser considerada livre e justa quando seus cidadãos são tratados de forma igualitária, sem privilégios para um ou para outro. No caso de Eliza Samudio, a materialidade do crime não foi comprovada pelas autoridades, que preferiram transformar as investigações em espetáculo midiático. Bruno acabou condenado a mais de 22 anos de prisão com base em depoimentos dos acusados de envolvimento no crime. Em suma, o delegado responsável pelo caso, que no rastro do espetáculo decadente conquistou mandato de deputado federal, norteou as investigações nas circunstâncias do caso, não na chamada “prova provada”.

Não tenho procuração para defender o atleta, algo que não faria se a tivesse, mas é preciso ser justo e isonômico diante de casos idênticos. Ex-diretor de redação do renomado jornal “O Estado de S. Paulo”, o jornalista Antonio Marcos Pimenta Neves matou, a tiros e pelas costas, Sandra Gomide, colega de profissão e sua namorada, de quem havia se separado semanas antes.

Pimenta Neves assumiu a autoria do crime e foi condenado, em maio de 2006, a 19 anos e 2 meses de prisão por homicídio (a pena foi reduzida para 18 anos e depois 15 anos), mas passou uma década em liberdade por causa de interposição de recursos. O jornalista só foi mandado à prisão em maio de 2011, quando seu último recurso foi rechaçado pelo STF. Em setembro de 2013, Pimenta Neves migrou para o regime semiaberto. Dois anos depois, em 2015, a defesa do jornalista requereu à Justiça o regime aberto, que foi concedido em março deste ano. Pimenta Neves cumpre pena em regime domiciliar. Em outras palavras, quatro anos após ser trancafiado reconquistou a liberdade, mesmo que de forma parcial.

Pimenta Neves é réu confesso e a polícia encontrou o corpo de Sandra Gomide em um haras. Bruno Fernandes nega ser o mandante do crime e o corpo de Eliza Samudio jamais foi encontrado. As diferenças entre ambos os casos são gritantes, mas apenas o goleiro está enfrentando a sede de vingança da opinião pública. Possivelmente porque a maioria dos brasileiros sequer se recorda da figura de Pimenta Neves, que sempre esteve trancado em gabinetes jornalísticos.

Não há dúvida que a situação de Pimenta Neves contraria a lógica e o conceito de justiça da sociedade, mas os benefícios concedidos ao jornalista constam da legislação vigente. Alguém há de afirmar que a lei é obsoleta, mas diante desse cenário é preciso mudá-la. E concordo de chofre com isso, pois um réu confesso não faz jus à presunção de inocência. Fazer justiça a fórceps é assassinar o Estado Democrático de Direito e a própria democracia. Pior ainda é usar o termômetro da opinião pública para tomar decisões judiciais.

Recentemente, em mais um rodopio interpretativo, que os especialistas, de pulmões cheios, chamam de hermenêutica, o STF de novo rasgou a Constituição e decidiu que sentenças condenatórias proferidas em segunda instância podem levar ao imediato cumprimento da pena, mesmo que ao condenado caiba o direito de recorrer. Destarte, à sombra dessa embolia interpretativa do Supremo, Bruno Fernandes deveria aguardar em liberdade o julgamento do recurso apresentado ao TJ-MG.

A Carta Magna, de 1988, não garante que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza? Ou será que o jornalista Pimenta Neves é melhor que o goleiro Bruno Fernandes? Muitos dizem que o Brasil chegou ao fim, mal sabem que nem começou.

(*) Ucho Haddad é jornalista político e investigativo, analista e comentarista político, cronista esportivo, escritor e poeta.

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