Com conhecida vocação para ser um eterno circo, o Brasil virou hospício por vontade da Justiça

(*) Ucho Haddad

Respeitável público! Definitivamente o Brasil atual é cansativo e desanimador. Não apenas pela sequência de fatos absurdos que emolduram o Estado, mas principalmente pelo desrespeito contumaz à legislação vigente. Criou-se no País o péssimo hábito da interpretação de conveniência da lei, como se nada mais servisse como referência jurídica, mesmo decisões anteriores para casos similares. O artigo 5º da Constituição Federal, por exemplo, determina de maneira cristalina em seu inciso XXXVI: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Contudo, nessa terra de ninguém em que se transformou o Brasil alguns são mais iguais que a extensa maioria dos reles cidadãos.

Na barafunda que alguns insistem em chamar de país, o qual vem envergonhando muitos dos nativos, sobram mestres (sic) de ocasião que tentam empurrar goela abaixo um conhecimento supostamente vasto acerca de determinados temas. Regurgitam verrinas como se tivessem nascido em uma peanha qualquer. São nauseantemente professorais ao tentar pasteurizar o pensamento alheio, quando na verdade a conclusão dos fatos é direito de cada um.

No caso do habeas corpus em favor do dissimulado e malandro José Dirceu, concedido pela 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) nesta terça-feira, 2 de maio, do nada surgiu um punhado de especialistas em Direito Penal. Esses proxenetas da sapiência sequer coraram a face ao invocar o artigo 312 do Código de Processo Penal (CPP), que estabelece as regras em que se dá a prisão preventiva, como segue:

“Art. 312 – A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria.”

Sabem os leitores do meu incondicional apego ao legalismo, mas carrego nas veias a essência dos insurretos, desde que a desídia dos representantes do Estado prejudique a sociedade como um todo. José Dirceu é uma inequívoca ameaça à continuidade da Operação Lava-Jato. E desde já desafio todos os que quiserem provar o contrário. Faço tal afirmação por conhecer em suas minúcias os subterrâneos do maior esquema de corrupção de todos os tempos, o Petrolão, assim como a atuação do prócer petista no submundo do poder. Aliás, tive o desprazer de experimentar as nefastas consequências de seu desempenho nas coxias imundas da política.

Se o ex-ministro da Casa Civil não representa risco para a aplicação da lei, o melhor é rasgar o Código de Processo Penal, mandar o Brasil pelos ares e começar tudo de novo, do zero. Mesmo assim, tenho dúvidas se esse descomunal esforço valeria a pena. Se José Dirceu não representa risco à ordem pública, o último a sair fica com a incumbência de apagar a luz.

Condenado à prisão no Mensalão do PT (Ação Penal 470), o primeiro escândalo de corrupção da era Lula e mestre de cerimônia do devastador Petrolão, José Dirceu cumpria pena na Penitenciária da Papuda, em Brasília, enquanto cobrava propinas à sombra do esquema criminoso que sangrou os cofres da Petrobras e de outras estatais. Essa temporada na Papuda foi uma das mais rentáveis de Dirceu como consultor empresarial (sic). Afinal, “nunca antes na história deste país” um preso ganhou tanto dinheiro com negócios escusos além das muralhas prisionais.

A continuidade delitiva de José Dirceu, comprovada a torto e a direito em ambos os escândalos de corrupção, é motivo suficiente para que o petista aguardasse na prisão o julgamento de recurso interposto junto ao Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4). Afinal, ele foi condenado a 32 anos de prisão por corrupção passiva, lavagem de dinheiro e crimes correlatos, podendo, em liberdade, atuar para destruir provas, ocultar patrimônio e coagir testemunhas.

A soltura de José Dirceu encontra esmaecido amparo no artigo 312 do CPP, mas é preciso morrer abraçado à letra frígida da lei para não perceber que o ex-ministro deveria continuar preso. Quando o Judiciário quer inventar moda, empinar interpretações da lei, recorre ao termo prisão provisória. Contudo, o caso de José Dirceu é de prisão preventiva. Que insurjam os defensores da hermenêutica, invencionice da intelectualidade jurídica para livrar bandidos de colarinho branco, mas não há como confundir provisório com preventivo. Mesmo que o “juridiquês” seja acionado às pressas e entre em cena para salvar o estelionato filosófico.

Nos dicionários da língua portuguesa assim é definido o adjetivo “provisório”: “que possui teor transitório, passageiro; que pode ser interino, temporário”. Já a definição de “preventivo” é distinta: “que serve ou é próprio para prevenir”. Essa comparação não deixa dúvidas de que a prisão de José Dirceu tinha caráter de prevenção, não de provisoriedade.

Voltando à surrada e ultrajada Constituição, a isonomia de tratamento que deveria ser dispensada aos cidadãos é letra morta, serve para nada. E não é preciso retroceder de maneira demasiada na linha do tempo para constatar essa violação de lei maior.

Bruno Fernandes de Souza, o goleiro Bruno, condenado a 23 anos de prisão sob a acusação de ser o mandante da morte de Eliza Samudio, alcançou o direito de aguardar em liberdade o julgamento de recurso apresentado ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais. O goleiro reconquistou a liberdade temporária a reboque de decisão monocrática do ministro Marco Aurélio Mello (STF). Porém, em mais um espetáculo de bamboleio interpretativo da lei e dando ouvidos à voz das ruas (e das redes sociais também), a maioria dos integrantes da 1ª Turma da Suprema Corte decidiu mandá-lo de volta à prisão sob o argumento de que o atleta representa ameaça à segurança e à integridade da mãe e do filho de Eliza Samudio.

Ora, Bruno nega os fatos e o corpo da vítima jamais foi encontrado. Isso significa que o indiciamento e a respectiva condenação se deram no âmbito dos depoimentos de alguns acusados e das circunstâncias do crime. Não se trata de pregar a inocência do goleiro, mas de exigir isonomia de tratamento. Até porque, José Dirceu foi condenado com base na chamada “prova provada” e nos depoimentos dos delatores do Petrolão, os quais dependem da verdade para continuar em liberdade ou para encurtar penas.

Alguém há de dizer que uma vida vale muito mais do que os bilhões de reais desviados dos cofres da Petrobras por meio de superfaturamento de contratos e pagamento de propinas. Não há dúvida a respeito, mas é preciso avaliar quantas pessoas morreram à sombra do maior esquema de corrupção da história da Humanidade.

(*) Ucho Haddad é jornalista político e investigativo, analista e comentarista político, cronista esportivo, escritor e poeta.

apoio_04