Comentário racista de William Waack serve para reflexão, mas antes o Brasil precisa livrar-se da hipocrisia

(*) Ucho Haddad

Nada justifica um comportamento racista, mas é preciso compreender que a tolerância de muitos é, na maioria das vezes, fruto do “politicamente correto”. Racismo não decorre apenas de manifestações preconceituosas, mas também de pensamentos nessa direção. Ou seja, há pessoas que socialmente mantêm um comportamento supostamente adequado, mas nem sempre o pensamento segue o mesmo caminho.

Um dos mais competentes jornalistas brasileiros e grande especialista em Leste Europeu, William Waack errou enormemente ao fazer comentário racista minutos antes de transmissão ao vivo, a partir de Washington, em 9 de novembro de 2016. Ao lado do comentarista Paulo Sotero, diretor do Wilson Center, Waack incomoda-se com o som de uma buzina automotiva e reage quase murmurando, sem perceber que estava sendo gravado.

“Tá buzinando por quê, ô seu merda do cacete? Deve ser um… não vou falar de quem, eu sei quem é”, disse o agora afastado apresentador do Jornal da Globo. Na sequência, Waack aproxima-se de Sotero e parece dizer: “É preto, preto”. Ambos riem da piada de péssimo gosto. E o apresentador emenda: “é coisa de preto… sim, com certeza”.

O som do vídeo não é conclusivo, mas o conjunto da obra sugere que William Waack errou ao referir-se de maneira preconceituosa ao “buzinador” que passava diante da Casa Branca, possivelmente reagindo à eleição de Donald Trump.

Esse imbróglio, que estava esquecido em algum escaninho da rede mundial de computadores, ressurgiu em cena e custou a William Waack o imediato afastamento da bancada do Jornal da Globo.

A emissora da família Marinho há muito tenta imprimir um conceito contra o racismo, mas não se pode esquecer que a Vênus Platinada endossou durante anos o programa humorístico “Os Trapalhões”, no qual eram comuns brincadeiras que tinham negros e homossexuais como alvos. E davam audiência, pois assim é a essência do povo brasileiro.

Muitas dessas maldosas piadas tiveram a “negritude” decepada, até porque era preciso adequar-se à nova realidade, mas o conceito racista perdura até hoje. É o caso da expressão “se não faz na entrada, faz na saída”.

Nos tempos em que o politicamente correto não tinha espaço e era órfão da hipocrisia, comentários racistas faziam parte do cotidiano de uma nação miscigenada em termos populacionais. Um disparate, mas essa era a realidade de então.

Em um país em que até a obra do genial Monteiro Lobato foi rotulada de racista, em especial o livro “Caçadas de Pedrinho”, não causa espécie a reação de uma sociedade que no fundo é como tal.

Contudo, não podemos esquecer que alguns apelidos – hoje considerados palavrões ou instrumentos de discriminação –, um dia foram aceitos e incensados pelos brasileiros com muita tranquilidade e parcimônia. Quem não se recorda das bicicletas do talentosíssimo Leônidas da Silva, o Diamante Negro, e os gols marcados pelo atacante Edinaldo Batista Libânio, conhecido como Grafite, que um dia vestiu a camisa do São Paulo FC. E ambas as alcunhas, entre tantas mais, estão relacionadas à raça negra.

O problema do Brasil em relação ao racismo é eminentemente cultural, pois a intolerância foi parte integrante – e ainda é – de um comportamento marcado pela suposta supremacia branca. Esse ranço covarde só desaparecerá com o passar do tempo.

Tanto é assim, que o Dia da Consciência Negra, comemorado em 20 de novembro, é ansiosamente aguardado pelos brasileiros por ser feriado em muitas cidades do País, não porque é um momento para a reflexão. Ademais, quando um povo concorda passivamente com a criação de cotas raciais em universidades públicas é porque a segregação continua agindo silenciosamente. Ou é difícil compreender o caput do artigo 5º da Constituição Federal, que reza o seguinte: “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”.?

Alguém há de dizer que estou a defender William Waack por ser um colega de profissão, mas não é verdade. Aliás, se há alguém no jornalismo brasileiro com cacife para tratar do assunto, certamente essa pessoa sou eu. Fui abençoado por ter tido uma mãe de criação negra, a qual me presenteou com irmãos e sobrinhos negros. E quando nos encontramos – ou pensamos um no outro – prevalece a fraternidade, não a cor da pele desse ou daquele.

“Enquanto a cor da pele for mais importante que o brilho dos olhos, haverá guerra”. Assim disse, em discurso na ONU, o imperador etíope Haile Selassie, também conhecido como deus dos rastafáris.

William Waack continua sendo um excelente profissional do jornalismo, como atesta a nota divulgada pela Rede Globo, mas errou enormemente como ser humano. Deve ser perdoado por ter se manifestado de forma preconceituosa, mas será durante muito tempo alvo do preconceito daqueles que já agiram de forma idêntica e não sabem perdoar. E atire a primeira pedra quem tiver moral para tanto.

(*) Ucho Haddad é jornalista político e investigativo, analista e comentarista político, escritor, poeta e fotógrafo por devoção.

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