Missa do Galo

(*) Maria Lucia Victor Barbosa

Dia destes ouvi muito ao longe, ecoando num sonho assombrado por reminiscências da infância, o cantar de um galo. Contraste com o urbano de asfalto e prédios, de trânsito e violência, aquela sonoridade foi acalanto que momentaneamente amorteceu os impactos da vida sofridos entre uma esperança e outra.

Percebi, então, com a nitidez que só os olhos do espírito possuem, que o canto do galo é evocação de algum momento do passado. Vem envolto em brumas do amanhecer para anunciar o dia, onde nunca sabemos o que sucederá. Tem uma intimidade esse som com quintais cheios de ciscares, de romãs pendendo de galhos para oferecer sua beleza rubra e apetitosa, de jabuticabeiras que serpenteiam em troncos retorcidos os negrores adocicados de suas uvas tropicais!

De novo cantou o galo em lonjuras que minhas sensações alcançaram. No sol que se elevava do horizonte aquela melodia combinou com uma expectativa alegre, um desabrochar de esperança desenhada nos labirintos do existir. Reconforto. Aconchego. Rede balançando. Risos perdidos no tempo das travessuras. Renascimento. Era isso que vinha marulhando pelo vento da aurora. Uma ternura estridente se expandia naquele ondear sonoro. Um chamamento para o mundo acordar. O galo, pensei, é o arauto da existência.

Nesta véspera de Natal, onde o verdadeiro conteúdo da comemoração se esvai, veio-me também, numa associação de ideias a Missa do Galo. Qual bispo teria batizado desse modo a missa, que no passado era celebrada à meia-noite com a solenidade de um ritual falado em latim? Naquele tempo que nem tão longe está, as mulheres cobriam a cabeça com véus rendados, o que as tornava bonitas e vaporosas para combinar com os mistérios do ritual. As casadas usavam mantilhas pretas, e as solteiras, brancas. Era um sinal de respeito ao local sagrado. Em algumas catedrais a música que vinha do órgão com toda a pompa do instrumento, intercalava-se com a angelical melodia dos corais que subia aos céus em espirais para louvar a Deus.

Depois da Missa do Galo, a ceia, a sobremesa da esplendorosa torta de frutas, o abrir dos presentes, a confraternização familiar. No presépio, o nascimento do Menino Jesus finalmente colocado na manjedoura entre Maria e José, em meio aos pastores e aos bichinhos de massa que olhavam espantados a estrela de papel dourado equilibrada por sobre a gruta.

Não se fazem mais Missas do Galo como as da minha meninice. Parece que agora sequer se chamam assim. Também não sei se são celebradas à meia-noite, porque há pressa para a ceia ou para a ida a algum baile. É cada vez mais difícil distinguir Natal de Réveillon, o que indica que o aniversariante anda esquecido. Portanto, prevalece uma festa profana sobre o ritual natalino, modificando-se a tradição para nela incorporar elementos de show. Desse modo, a liturgia alterada não favorece a introspecção que coloca o homem diante da divindade para com ela conversar.

Pois, bem, nesse Natal há algo estranho, como se perdida estivesse não só certo tipo de celebração como comportamentos e valores havidos nos confins de minha vida. Nem sequer sinto no ar aquele clima inconfundível, que envolvia as pessoas através de elos de solidariedade para tornar as atitudes mais amenas. Para falar a verdade, até Papai Noel está ficando cansativo. Há um em cada esquina, em cada loja, tentando vender.

Estes pensamentos muito meus, e podem não ser compartilhados com quem lê neste instante estas linhas. Talvez, possam ter uma explicação. Errada sou eu que não sei mais brincar, pois é sabido que Natal é, definitivamente, uma festa de crianças. Não consigo ouvir os sinos que sempre me encantaram. Não capto a magia da Noite Feliz. Não estou vendo os milhares de pequenas lâmpadas chinesas que enfeitam prédios e casas. Não escuto as músicas natalinas. Só de memória consigo cantarolar: “Papai Noel, vê se você tem a felicidade para me dar”. Em vão busco, à meia-noite, a Missa do Galo que não existe mais.

Depois de muito esforço, de vagar por entre recordações e nostalgias, concluo que há um lugar seguro onde posso sempre encontrar o Natal. Basta seguir a estrela e olhar para a manjedoura. Ele está lá. Para que mais?

Então, pensei: não posso trair o Natal. Tenho sempre que reinventá-lo com as possibilidades da fé e com a beleza da esperança, porque o Natal está dentro da gente e não fora.

(*) Maria Lucia Victor Barbosa é socióloga, professora e autora de, entre outros livros, “Voto da Pobreza e a Pobreza do Voto – a ética da malandragem” e “América Latina – em busca do paraíso perdido”.

apoio_04