(*) José Nêumanne Pinto
Atualíssima é a frase urdida pelo gênio político do pessedista maranhense Vitorino Freire nos idos sob a égide da Constituição mais liberal que o Brasil teve, a de 1946: “É tão grave a crise que vaca não reconhece bezerro”. A de hoje é pior: ficou difícil até distinguir vaca de bezerro, tão confuso se tornou o cenário institucional brasileiro. O presidente Michel Temer mandou as fantasias reformistas para as calendas que as prorroguem ou para os infernos que as carreguem. Fê-lo porque o Congresso também assumiu o Poder Executivo para livrar o chefe deste de duas incômodas investigações pedidas pelo amaldiçoado ex-procurador-geral da República Rodrigo Janot, não reconduzido ao posto, para se afastar do céu seco do Planalto a sombra de sua espada de Dâmocles enferrujada.
Na recente revolta dos carreteiros, o País parou, os preços de gás de cozinha e da gasolina subiram a bel-prazer dos transportadores de cargas, que bloquearam as rodovias e provocaram pane seca e desabastecimento geral de gêneros alimentícios de primeira necessidade. As batatas sumiram até da mesa dos vencedores, contrariando a lei da tribo imaginada por Machado de Assis, o gênio do Cosme Velho. Após ter mandado as Forças Armadas prenderem os rebelados do asfalto e não ter sido obedecido, decretado prisões que a Polícia Federal (PF) fingiu que não tinha de cumprir e lavrado multas que só serão cobradas quando o País construir o trem bala de submetralhadoras roubadas de quartel ou contrabandeadas por traficantes, o chefe do governo instituiu a “polipartilha” do poder, na qual caminhoneiros mandam, o Congresso ouve porque tem juízo, o Executivo obedece porque não pode mais e o Judiciário cala ou emite platitudes aos borbotões por meras vaidade e insensatez. Antes, falava-se em democracia, governo do povo, e agora chegamos à “dialogocracia” repetida, na qual o ex-futuro chefe e futuro ex-chefe na mesma pessoa fixa uma tabela de frete, anunciada como a mais nova “lei do antimercado” negociada, até que esta seja renegada pelos mais antigos mandamentos do mercado de pulgas da reinante insensatez ruminante.
Os pronunciamentos de brinquedo de papel machê foram economizados ou repetidos de acordo com a conveniência. Durante a crise na estrada, o dra. Cármen Lúcia, chefe suprema da Corte em que a Justiça não tem dois pesos e duas medidas, mas 11 passos e 11 retrocessos, em que os maus são abençoados e as pestes são distribuídas, fechou-se em copas, paus, ouros e espadas. No meio da refrega, fez-se ler em entrevista na qual falou sobre generalidades, mas nada disse nem lhe foi perguntado sobre a crise em que os consumidores de diesel ascenderam à aristocracia.
Mas seria injusto afirmar que, findas as batalhas após as quais os feridos foram meticulosamente espetados em ponta de baionetas, ela não se manteve silente e ausente. “A construção permanente do Brasil é nossa e é democrática e comprometida com a ética. Não há escolha de caminho: a democracia é o único caminho legítimo. Cumprimos nosso dever com a República Federativa do Brasil. Há de se ter serenidade, mas também rigor com o cumprimento e o respeito aos direitos, especialmente os fundamentais”, afirmou Cármen, na abertura de uma sessão do STF, que lhe cabe presidir até entregar, em setembro, o bastão ao atual vice, Dias Toffoli. No meio da balbúrdia generalizada de um plenário que não se entende nem sobre a duração do intervalo para o cafezinho, Cármen garantiu que essa algaravia promoverá a “aliança de cidadãos”, que se engalfinham nas redes sociais sobre a condução dos negócios da República, a necessidade de a atriz mulata ser retinta para interpretar a sambista negra e as decisões disparatadas de árbitros sobre as regras “claras” do ludopédio.
“Há de se ter seriedade e também manter a esperança. Há de se cuidar dos direitos e também garantir os serviços e o incansável combate à corrupção. Não vivemos de quimeras, embora lutemos por sonhos”, disse madame presidente na qualidade de Acácia dos Acácios naquela mesma ocasião. Dias depois, contrataria espaço e transporte exclusivo para ela e seus dez colegas evitarem o povo rebelde e barulhento no acesso comum aos aviões de carreira. Não é sui generis o conceito de igualdade dela?
No sábado, 9 de junho, palestrando em Londrina, no norte do Paraná, Estado onde o juiz de primeiro grau Sérgio Moro reina porque pune, o relator da Operação Lava Jato caprichou na paródia do bom mocismo galopante dando ao “óbvio ululante” de que falava o gênio do teatro e da crônica esportiva Nélson Rodrigues a majestade do nariz de cadáver de suas grã-finas favoritas. Ao participar do 2.º Congresso Internacional de Ciência Jurídica, o ministro do STF Edson Fachin obtemperou: “Parlamentares erram e por isso devem responder. Mas o Parlamento é essencial à vida democrática. Juízes também erram e por isso o Estado deve responder, mas o Judiciário é essencial à vida democrática. No Estado, administração também cometem erros desde o funcionário mais humilde ao mais gabaritado da Nação. E quem erra deve responder”. Fachin deu continuidade à manifestação deixando claro que considera fundamental a manutenção da administração pública como aparelho do Estado democrático. E também ponderou: “É fazendo as instituições funcionarem que o Brasil vai dar um futuro ao seu passado, como escreveram as professoras Heloisa Starling e Lilia Schwarcz, esta última em uma obra importante sobre a história recente do País” (Brasil, uma Biografia). Talvez fosse o caso de ele empregar definição mais clara e também mais escorreita a que recorreu Jânio Quadros quando questionaram sua predileção pela ingestão alcoólica: “Bebo porque é líquido. Se fosse sólido, comê-lo-ia!”
Essa simplicidade cômica do ex-presidente não compareceu ao texto Contra notícia falsa, mais jornalismo, da lavra do presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), também ministro do STF Luiz Fux, publicado neste Estado (na página 6 da edição de Política do domingo, 10 de junho), à guisa de introduzir sua eventual participação no Fórum Estadão sobre Fake News, ao qual terminaria faltando. Segundo o doutor, “o jornalismo de qualidade pode incomodar, mas sua existência, deve ser garantida”. No mais lídimo estilo Cármen Lúcia e Fachin, Fux completou seu rosário de lugares comuns com um que ao menos nos consola. Assim ele concluiu o texto publicado: o TSE “defende os profissionais que lutam para promover participação ativa dos cidadãos no processo democrático e repele qualquer tentativa de silenciá-lo”. Ufa, aleluia!
O mesmo não se pode dizer de seu inimigo cordial, o famigerado Gilmar Mendes, que o antecedeu na cadeira do TSE. Vários corpos à frente na corrida pela coroa de impopular-mor da República contra Temer, do qual é conviva no Jaburu, Sua Excelência capricha em atitudes antipáticas em pronunciamentos e votos no Supremo. Recusa-se a se considerar impedido e concede habeas corpus a mancheias a parentes da mulher, Giomar, e clientes da banca de advocacia da qual ela é sócia. E sempre que pode, citando ou sendo citado pelos “coleguíssimos” Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli, desanca policiais, procuradores ou juízes federais de primeira instância pelo fato de combaterem a corrupção com denodo, atribuindo-lhes garras e ganas absolutistas.
Em entrevista a Mário Vitor Rodrigues, que circula neste Portal do Estadão de domingo, o ministro que se diz “O Supremo” desfiou uma série de argumentos contra a simpatia do povo e a favor da impopularidade como único instrumento viável de justiça. Por falta de espaço, resumo todos em seis frases: “É preciso sempre advertir que se os tribunais decidem em consonância com a opinião pública eles colocam em risco os direitos e garantias constitucionais. Hitler dizia que os tribunais nazistas traduziam o espírito do povo… e foi o que foi. Eu cumpro esse papel com bastante tranquilidade e sei que estou honrando a minha missão institucional. Eu hoje disse a você que não me preocupo em fazer grandes obras, mas em evitar que se cometam catástrofes”.
Quem quiser conhecer a íntegra de seus argumentos sobre a gênese nazista do populismo clique aqui
Em resumo, no Brasil, se não é cega, a Justiça é muito míope e só consegue enxergar o que mais apraz a quem dela se serve.
(*) José Nêumanne Pinto é jornalista, poeta e escritor.