Quando a sociedade defende o desrespeito à lei por razões ideológicas, a democracia está sob ameaça

(*) Ucho Haddad

As mensagens trocadas pelo então juiz Sérgio Fernando Moro e integrantes da força-tarefa da Operação Lava-Jato em Curitiba configuram um escândalo que macula a investigação como um todo, colocando em xeque a forma como se deram as investigações e, por consequência, as condenações dos envolvidos no maior e mais ousado esquema de corrupção da história.

Diante da corrupção é impossível ser tolerante, mas é preciso respeitar a lei em sua inteireza, sob pena de o culpado migrar para a condição de vítima em questão de pouco tempo. Eliminar a chaga em que se transformou a corrupção exige determinação e paciência, algo que os investigadores da Lava-Jato aparentemente não tiveram. Acusar e condenar de roldão não é fazer justiça, ao mesmo tempo em que representa um atentado ao Estado de Direito.

Insisto na tese de que por trás das investigações da Lava-Jato conduzidas pelos procuradores de Curitiba há um punhado de interesses políticos duvidosos. O que de certa forma explica a forma açodada – em alguns casos irresponsável – com que as autoridades investigaram, julgaram e condenaram. Não se trata de defender corruptos ou, como pregam os ensandecidos, querer a volta dos saltimbancos ao poder, mas de exigir o respeito incondicional à lei. Afinal, amanhã a vítima desse vale tudo pode ser qualquer um, inclusive você.

Quando um juiz combina estratégias com integrantes do Ministério Público está-se diante de um Estado policialesco, em que o respeito à lei é mero detalhe que se cumpre com um falso heroísmo que ganha a cena a reboque de seguidas cortinas de fumaça. A forma passiva com que a opinião pública está a aceitar esse escândalo, com direito a endossar o ilícito, causa enorme preocupação, pois o erro pode tornar-se padrão.

Se a sociedade brasileira quer impedir o retorno da esquerda ao poder, que o faça através das urnas, não endossando o atropelamento do conjunto legal vigente. Quando isso acontece, abre-se caminho para situações piores e mais perigosas, na maioria das vezes sem direito a retorno. E quem já experimentou regimes de exceção e ainda tem a memória em pleno funcionamento sabe como isso funciona.

É impossível negar a participação de petistas no esquema de corrupção que ficou conhecido como Petrolão, mas é inaceitável que alguém seja condenado com base em indícios, o que contraria regra basilar do Direito. Aliás, a expressão latina “in dubio pro reo” (na dúvida, a favor do réu) foi ignorada pelo ex-juiz Sérgio Moro ao condenar Lula no caso do apartamento no Guarujá, cidade do litoral paulista. Aliás, Moro desconsiderou depoimentos de funcionários da OAS, que contrariaram o palavrório de José Adelmário Pinheiro Filho, conhecido como Léo Pinheiro. E acabou prevalecendo o que disse Pinheiro, que àquela altura estava desesperado atrás de um acordo de colaboração premiada.

Segundo mensagens trocadas entre o ex-juiz e integrantes da força-tarefa da Lava-Jato, o procurador Deltan Dallagnol “tinha dúvidas sobre a solidez da história que contaria ao juiz Sérgio Moro”, revela o site The Intercept.

Que Lula sabia do esquema de corrupção não há dúvidas, até porque essa era a mola propulsora de um projeto político acintoso que tinha o PT na proa, mas seguir o que manda a lei é condição sine qua non no momento da condenação. O que não aconteceu. E não estou a defender Lula, porque se esse fosse o meu desejo não teria denunciado o esquema criminoso desde agosto de 2005.

Ainda de acordo com o The Intercept, “a apreensão de Deltan Dallagnol, que, junto com outros 13 procuradores, revirava a vida do ex-presidente havia quase um ano, não se devia a uma questão banal. Ele estava inseguro justamente sobre o ponto central da acusação que seria assinada por ele e seus colegas: que Lula havia recebido de presente um apartamento triplex na praia do Guarujá após favorecer a empreiteira OAS em contratos com a Petrobras”.

“Falarão que estamos acusando com base em notícia de jornal e indícios frágeis… então é um item que é bom que esteja bem amarrado. Fora esse item, até agora tenho receio da ligação entre petrobras e o enriquecimento, e depois que me falaram to com receio da história do apto… São pontos em que temos que ter as respostas ajustadas e na ponta da língua”, escreveu o coordenador da Lava-Jato em Curitiba em mensagem enviada ao grupo.

Em suma, o ex-presidente Lula foi condenado à prisão com base em indícios, ao passo que sua condenação deveria ter ocorrido à sombra de prova inequívoca. Ademais, mantida a condenação, o ex-metalúrgico tem o direito constitucional de recorrer em liberdade, a exemplo do que determina o artigo 5º da Carta Magna, inciso LVII: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

Considerando que o artigo em questão é cláusula pétrea, o que não permite alteração por emenda constitucional, também não cabe interpretação da sua redação. Em outras palavras, deve-se cumprir o que está escrito, sem qualquer possibilidade de bamboleio interpretativo para favorecer esse ou aquele. Se homicidas recorrem de sentenças condenatórias em liberdade, não há razão para Lula estar preso após condenação em segunda instância. O entendimento do Supremo sobre a matéria é uma ode ao absurdo, pois, como mencionado, o que não é passível de mudança redacional não permite interpretação de conveniência.

Voltando ao escândalo da “Vaza-Jato”… Há quem garanta que a troca de mensagens entre Moro e Dallagnol não é ilícita, mas o então juiz deveria ter se declarado suspeito para julgar os casos da Lava-Jato, pois assim determina o artigo 254 do Código de Processo Penal. A suspeição de Moro confirmou-se por “orientar qualquer das partes” (art. 254, inciso IV).

Como ninguém sabia da troca de mensagens, além dos integrantes do grupo, Moro sentiu-se à vontade para continuar à frente das ações penais decorrentes da Lava-Jato. Contudo, consciência à parte, o caso é eivado de imoralidade e coloca a Operação à beira do precipício do descrédito.

Os coléricos não medem palavras para defender métodos ilícitos e atacar os que pregam o respeito à lei, mas é importante ressaltar que um povo só transforma-se em nação quando aceita viver debaixo de um conjunto legal. Do contrário, quando o vale tudo prevalece, retroage-se no tempo até os tempos da caverna, quando a lei era feita no momento da necessidade.

Em tese, a arguição de nulidade no escopo da Lava-Jato caberia na esteira do artigo 564 do Código de Processo Penal. O inciso I do mencionado artigo estabelece que a nulidade ocorrerá “por incompetência, suspeição ou suborno do juiz”. Moro tornou-se suspeito ao traçar estratégias com integrantes da força-tarefa da Lava-Jato, pois orientou representantes do MP.

Além disso, o ex-juiz deu de ombros para o artigo 129 da Constituição Federal, que determina ser o Ministério Público o único detentor da prerrogativa de conduzir ação penal pública.

Art. 129 – São funções institucionais do Ministério Público:

I – promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei.

Retorno ao destampatório de parte da sociedade… Se uma fatia da população entra em torvelinho diante da possibilidade de, cumprindo-se a lei, ver a esquerda recobrando forças, o melhor a se fazer não é defender o vale tudo, mas, sim, o respeito incondicional à lei. Afinal, o estrito cumprimento do conjunto legal não dá margem a devaneios jurídicos.

Outrossim, a arguição de nulidade das ações penais – passível em termos teóricos – na prática é quase impossível, pois as provas que permitiriam essa manobra jurídica legítima foram obtidas de forma ilegal. Sendo assim, o vazamento das mensagens revela o quão imoral pode ser uma investigação e a consequente condenação.

Continuo defendendo, apesar do espernear dos radicais, que Sérgio Moro não tem mais condições de permanecer à frente do Ministério da Justiça, pois desconhece a conduta adequada de um magistrado que se preze. Não custa lembrar que Moro mostrou ao País seu desprezo pela lei ao dar publicidade à gravação da conversa telefônica entre Lula e a então presidente Dilma Rousseff. Ciente de que Dilma gozava de foro privilegiado, Moro não poderia divulgar o áudio, mas o fez porque à época já tinha interesses terceiros.

No caso de Deltan Dallagnol, o Ministério Público Federal tem nomes respeitadíssimos e de competência reconhecida que não merecem esse espetáculo picaresco encenado por alguém movido pelo histrionismo.

(*) Ucho Haddad é jornalista político e investigativo, analista e comentarista político, escritor, poeta, palestrante e fotógrafo por devoção.

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