Decisão do STF a favor de tese que pode anular condenações fez valer garantias constitucionais

Há muito o UCHO.INFO alerta para o perigo que representa a violação da lei no âmbito de denúncias e julgamentos de réus de todos os naipes, pois o criminoso pode, a depender da transgressão cometida pelo agente do Estado, se transformar em vítima. O que não interessa à sociedade. Além disso, de acordo com a dosimetria da pena imposta ao réu e o prazo prescricional correspondente, o erro por parte da autoridade pode desaguar no oceano da impunidade.

Desde a deflagração da Operação Lava-Jato, em 2014, temos insistido em mencionar as operações Castelo de Areia e Satiagraha como exemplos de investigações anuladas pela Justiça em função de violação da lei. Essa insistência de nossa parte, que parece ter servido para nada, tinha como objetivo mostrar os efeitos colaterais do desrespeito à lei por parte dos agentes públicos.

Infelizmente, o Brasil vive um período em que a sociedade pensa com o fígado, exigindo condenação a qualquer preço, o que significa endossar o justiçamento e repudiar a justiça. Quando o justiçamento é defendido pelo cidadão, abre-se caminho largo e livre para um Estado de exceção, contrapondo-se ao Estado Democrático de Direito, algo que muitos falam com pompa e circunstância, talvez porque é politicamente correto ou virou moda. Isso fez com que algumas autoridades se agarrassem à teoria do “vale tudo”. Os diálogos da “Vaza-Jato” falam por si.

Na tarde desta quinta-feira (26), o plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu, por maioria, validar a tese da sequencialidade na apresentação das alegações finais. De acordo com o entendimento de seis dos onze ministros da Corte, o réu delatado deve apresentar suas alegações finais após a apresentação das alegações do réu delator. Mesmo com parte da opinião pública protestando contra a decisão, é preciso reconhecer que não se pode violar o direito à ampla defesa e ao devido processo legal.

Considerando que o interesse do réu delator diverge do interesse do réu delatado, aceitar a inversão dessa sequência necessária é vilipendiar a democracia, não sem antes colocar em risco todo o trabalho de investigação e o trâmite processual. E ao delatado deve ser garantido o direito de conhecer as acusações que lhe fazem, não importando quem seja o acusador.

Em seu artigo 5º, inciso LV, a Constituição Federal é clara ao determinar que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.

Não é preciso nenhum esforço do raciocínio para compreender a diferença que existe entre o réu delator e o réu delatado. A simples substituição da bílis pela massa cinzenta é suficiente. Basta ler trecho do voto do ministro Celso de Mello, decano da Corte e que tem origem no Ministério Público: “É inegável que o acusado tem o direito de conhecer a síntese da acusação contra ele. Primeiro a acusação, depois a defesa. Pela aplicação da garantia da ampla defesa, a ordem deve ser memoriais do Ministério Público, memoriais do agente colaborador premiado e, em último lugar, memoriais do corréu delatado.”

No Brasil recente criou-se no Judiciário o péssimo costume de interpretar a Carta Magna, inclusive as chamadas “cláusulas pétreas”, como se o texto constitucional pudesse ser reescrito a qualquer tempo, sempre a reboque do interesse do momento. A Constituição é estanque em seus mandamentos, portanto não cabe nesse cenário qualquer bamboleio interpretativo, algo que está a anos-luz da tão cortejada hermenêutica.


De chofre faz-se necessário ressaltar que se houve erro por parte do Judiciário no trâmite processual, a responsabilidade é de quem ultrajou a lei e atentou contra a lógica jurídica. E que cada um arque com as consequências dos seus atos, pois do contrário deve-se aceitar a ideia de que o País está se transformando em balbúrdia jurídica.

A questão que embala o pensamento colérico de parte da sociedade brasileira – em especial a porção que prefere não pensar – é a Lava-Jato. Qualquer movimento, por menor que seja, mesmo que para garantir a aplicação da lei dentro dos seus limites e blindar o Estado Democrático de Direito, é classificado como golpe contra a operação que desmantelou o maior e mais ousado esquema de corrupção de todos os tempos. Se de fato golpes contra a Lava-Jato existem – é preciso conferir –, esses partem da própria operação.

Não se pode cometer um crime para combater outro, como temos afirmado ao longo dos anos. É possível combater a corrupção aplicando com rigor a legislação vigente, mas é reprovável passar por cima da lei para condenar à sombra de interesses políticos e ideológicos, sempre abrigados sob a cangalha do obscurantismo. Contudo, pouco ou nada custa abrir os olhos para o fato de que existe vida além da Lava-Jato. Ou seja, há outros casos jurídicos (milhares, talvez) em todo o País que serviram de palco para a transgressão legal que levou o STF a decidir a favor da sequencialidade no escopo das alegações finais.

Muito tem se discutido a respeito da criação de uma CPI para investigar magistrados de tribunais superiores, sem que até o momento tenha sido apresentado fato determinado que justificasse aquilo que vem sendo defendido por setores da sociedade na base do “ouvi dizer”. Sem fato determinado não há CPI – a Constituição trata do tema com clareza e precisão.

Porém, enquanto nada do que se fala e cochicha é merecedor de prova, causam espécie algumas alegações e propostas apresentadas por ministros do Supremo durante o julgamento em questão. E esses escorregões jurídicos deveriam colocar o cidadão em posição de alerta, o que não acontece. Aliás, só acontece quando quem profere um voto que foge às expectativas já caiu no cadafalso da opinião pública.

O plenário da Corte foi alcançado por aberrações jurídicas como, por exemplo, a aplicação da decisão em pauta para casos futuros, tese natimorta porque de agora em diante a sequencialidade nas alegações finais será respeitada. O que deveria ter acontecido antes. Além disso, beira a irresponsabilidade ignorar a premissa de que não se pode penalizar quem foi alvo de erro judicial pretérito, pelo contrário, sem que o dano seja reparado no presente.

Outra bizarrice jurídica que surgiu em plenário foi a alegação de que o entendimento da Corte deveria ser repensado, pois impactará muitas decisões judiciais emolduradas por condenações. Como mencionado acima, que o Judiciário arque com as consequências, pois quem ingressa na magistratura precisa saber que a lei deve ser respeitada por todos, não apenas pelos julgados, mas também e principalmente pelos julgadores.

Como grafado anteriormente, o Brasil vive período ímpar de sua história, marcado pela intolerância de uma sociedade que diuturnamente é empurrada para o cocho do revanchismo ideológico, não sem antes passar pela fermentação contínua do discurso de ódio. Esse cenário de quase turbulência social explica o desejo de radicalização de uma parcela dos brasileiros, que enxerga na ortodoxia do pensamento e das atitudes a senha para a solução dos problemas. Ledo engano!

Não se trata de defender corruptos, como muitos irascíveis afirmam, mas de defender direitos, sem os quais a sociedade, como um todo, passa a correr riscos constantes. Ademais, se tivesse procuração para defender corruptos, o UCHO.INFO não aceitaria tal papel, pois, além de fugir às nossas crenças, seria um atentado contra o esforço do editor deste noticioso, que em agosto de 2005 fez a primeira denúncia sobre o esquema de corrupção que devorou os cofres da Petrobras. E muitas outras aconteceram, sempre acompanhadas de persistência para que o caso fosse realmente investigado. Justiceiros, “vade retro”, porque a democracia pede passagem!