Intimidade, vida privada e vida pública – 1ª Parte

(*) Rizzatto Nunes

O tema da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas tem sido bastante abordado nos últimos dias. Por isso, resolvi publicar aqui na minha coluna um trecho do que escrevi já há muitos anos e que está em meus livros Comentários ao Código de Defesa do Consumidor (São Paulo: Saraiva, 8ª. Edição, 2015) e Curso de Direito do Consumidor (São Paulo: Saraiva, 13ª edição, 2019).

Como é um pouco longo, dividi o artigo em duas partes. Hoje publico a primeira, na próxima quarta-feira, a segunda.

Segue.

1ª Parte

Direito à intimidade, vida privada, honra e imagem

As garantias estabelecidas no inciso X do art. 5º da Constituição Federal são relevantes para uma reflexão sobre os direitos do consumidor, porquanto este poderá ser vítima de violações que a norma magna pretende evitar.

Vejamos o conteúdo expresso do inciso X:

“Art. 5º (…)

X — são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.

Como se observa, a Constituição Federal pretende dar guarida absoluta (“são invioláveis”) à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem. Tomemos cada um desses conceitos para compreender a extensão do preceito normativo.

Intimidade e vida privada

Os dois termos não podem ser dissociados, uma vez que, obviamente, o valor semântico de um lembra o outro. Porém, como a norma constitucional utiliza os dois, é preciso esclarecê-los. Aliás, de pronto, surge a indagação: são os dois conceitos designativos do mesmo sentido?

A doutrina que já analisou a questão respondeu que não, apesar da necessária imbricação de ambos (I).

Para entender o exato significado dos conceitos, tem-se de lembrar certos aspectos da vida social na qual estão presentes as pessoas, naquilo que diz respeito a sua individualidade na relação com o coletivo. É preciso distinguir o âmbito público do âmbito privado.

Com efeito, o público é sempre aquilo que, como o nome diz, aponta para a participação aberta a todos ou para a possibilidade de participação de todos. É o que pertence ao povo ou à coletividade; ou mesmo apenas os atos vivenciados por poucas testemunhas, mas, assim, com caráter público. É ainda o formato real e abstrato dos atos do governo (II).

O privado é o oposto do público, e, embora o conceito seja da Antiguidade, ainda guarda o sentido de privus, “ser privado de”, isto é, ser privado do público. É o que ocorre no domínio do lar, na órbita pessoal, no restrito âmbito doméstico, quer física, quer psiquicamente.

Dessa maneira, pode-se perceber que todo indivíduo tem uma esfera privada de direitos e interesses. Mas nem todos têm uma atuação no âmbito público.

O cidadão comum, vai-se dizer, é o exemplo daquele que tem apenas vida privada. O político é aquele que tem basicamente vida pública — mas tem, também, vida privada.

O cidadão comum, é verdade, poderá ter uma aparição ou reconhecimento público, quando, por exemplo, agir, ainda que esporadicamente, de forma pública: participando de um programa de televisão, cometendo um delito numa praça, enganando consumidores na venda de produtos falsificados.

A distinção entre as duas esferas pode ser feita a partir da hipótese do papel social.

Com efeito, a sociologia jurídica desenvolveu o conceito de papel social (III).

O surgimento dos papéis está ligado ao crescimento da sociedade, de maneira que o conceito atualmente utilizado é o de complexidade, ou melhor, alta complexidade social.

O sentido de complexidade social está relacionado ao dado concreto e real das ações possíveis do indivíduo. Ou, melhor dizendo, o mundo real se apresenta ao indivíduo oferecendo latentemente ações que ele pode realizar. Mas a quantidade de ações é tão grande que, de fato, real e historicamente, o mundo apresenta sempre muito mais possibilidades do que aquelas que o indivíduo vai realizar em toda a sua vida.

O indivíduo está, assim, fadado a escolher. Desde que entra no mundo, vai agindo a partir de escolhas; não há alternativa. A essas escolhas se dá o nome de seletividade. Esta é uma operação de seleção para optar diante da complexidade de ações possíveis.

A cada ato, a cada passo, o indivíduo age por seleção e vai compondo o quadro de seu destino. A inexorabilidade da seleção tem como função reduzir a complexidade do mundo: a cada escolha que a pessoa faz, opera-se a seleção e reduz-se a complexidade — escolheu algo entre muitos (IV).

Mas, simultaneamente, enquanto se opera a seleção, vai-se produzindo um enorme contingente que ficou de lado: escolheu ser advogado; em compensação, não será juiz, promotor de justiça, procurador, delegado etc.

Para essa teoria dos papéis sociais, o que vale é o dado objetivo da escolha. Não se está — isso não importa para o papel social , pensando na motivação que levou à escolha (se foi consciente ou inconsciente, por desejo, vontade ou “sem querer”) nem na capacidade ou condição da pessoa que escolheu (força física, inteligência, força intelectual, arranjo político ou familiar, ação entre amigos etc.), nem ainda nos interesses que geraram a seleção (econômicos, jurídicos, religiosos etc.). O que vale é a seleção objetivamente operada (V). Assim, por exemplo, não interessa perguntar por que o candidato ao vestibular tornou-se estudante de Direito: se por vocação, ameaça dos pais, acidente — “ele queria fazer Medicina mas não conseguia passar” — ou qualquer outro motivo. O que importa é a seleção: o indivíduo tornou-se estudante de Direito; e o contingente: logo, não é estudante de Medicina, Engenharia, Administração de Empresas etc.

Os papéis sociais foram-se criando por conta das inúmeras seleções operadas pelos indivíduos no mundo. A produção desses papéis tem sua explicação na exata medida em que as sociedades crescem em complexidade. O crescimento da complexidade oferece alternativas infindáveis; estas acabam sendo selecionadas, indo compor, pelos encontros de sentidos das opções operadas, os papéis sociais.

Na realidade, a complexidade da sociedade é tamanha que para o indivíduo as alternativas que lhe oferece o mundo não são ações puras, mas papéis sociais postos à sua disposição para serem selecionados. A escolha é de papéis e não de ações (VI).

Os papéis sociais podem ser, assim, definidos como repertórios formais de funções sociais — ações e comportamentos — preenchidos temporalmente por indivíduos.

Isso significa que, estando no papel, o indivíduo deve comportar-se de acordo com o figurino normativo para ele previsto. Para o comportamento socialmente adequado ao papel, basta agir como o esperado: todas as demais pessoas têm uma expectativa normativa de que o indivíduo, naquele papel, vai comportar-se como se espera que se comporte. Isso traz vantagens e desvantagens.

A vantagem está ligada à economia de ações: no papel, para o indivíduo estar bem socialmente, basta agir como se espera que vá agir. O comportamento já estava pronto e ele se enquadrou; amoldou-se à estrutura normativa reinante formalmente no papel. Ele passa, então, a participar da sociedade dentro de maior estabilidade.

A desvantagem está relacionada ao próprio indivíduo, à pessoa que existe “por detrás” do papel: ela deixa de ser vista como tal. Apresenta-se, comunica-se e é cobrada a partir do papel por ela assumido. Essa relação indivíduo-papel, do ponto de vista social, pode gerar conflitos. Não resta dúvida de que, apesar da fixidez do papel, o indivíduo real nele absorvido irradia, no comportamento resultante do exercício do papel, vários aspectos de sua personalidade, além de nele desempenhar suas aptidões pessoais, tais como habilidades manuais, inteligência, ponderação, discrição etc.

E a teoria dos papéis sociais pode, então, contribuir sobremaneira para a elucidação da questão do público e do privado no que diz respeito ao indivíduo.

É que, do ponto de vista da complexidade social, os papéis oferecidos à seleção são públicos e privados. O comportamento de um lado e a expectativa social — de todas as outras pessoas e papéis — de outro variam de acordo com o tipo de papel. Se é privado, a exigência pública é uma, digamos, mais liberal. Se é público, é outra, extremamente rigorosa em termos do controle das alternativas de ações e comportamentos possíveis.

E um problema resiste ligado à relação indivíduo-papel. Trata-se do fato de que na verdade o indivíduo real — psíquica e fisicamente considerado — é um centro de papéis; é um feixe de papéis que dispõe de inúmeras ações e comportamentos. Cada indivíduo é uma soma de papéis e por vezes esse indivíduo, enquanto ser real, confunde-se com os papéis que exerce. O indivíduo é simultaneamente pai, filho, irmão, estudante, profissional, político, torcedor etc., num composto de papéis sociais. E nesse todo podem estar papéis sociais públicos e privados, nem sempre sendo fácil distinguir quando o comportamento social real é de um ou de outro.

Há muito ainda o que dizer a respeito dos papéis sociais: a possibilidade de o indivíduo irradiar sua luz pessoal para o papel; a institucionalização dos papéis etc. Mas para o assunto que se está aqui estudando e que na sequência se desenvolverá o que apresentamos é o suficiente (VII).

Continuaremos…

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Referências:

(I) Acompanhamos aqui os Professores David Araujo e Vidal Serrano Nunes Júnior (Curso de direito constitucional, S. Paulo: Saraiva, 1998, item 2.1.1).

(II) Ressalvem-se os chamados “segredos de Estado”, justificáveis apenas na exata medida em que são segredos para preservar o bem público: segurança, paz etc.

(III) Assim, por exemplo e pelos demais: Niklas Luhmann, (Legitimação pelo procedimento, Brasília: UNB, 1980, especialmente, p. 71 e s.)

(IV) A escolha gera um alívio ao indivíduo. Como o mundo se apresenta com alta complexidade e milhões de possibilidades, isso por si só é fator gerador de angústia. A seleção a diminui.

(V) Nem importa saber se a pessoa gostou ou não da escolha, apesar de tudo isso poder ter alguma validez na seleção “papel-indivíduo”.

(VI) É muito raro que um indivíduo isolada e conscientemente “crie” um novo papel social. Este surge espontaneamente, da ilimitada e intrincada soma de ações e relações sociais preexistentes entre os demais papéis sociais.

(VII) Para mais informações ver Niklas Luhmann, (Legitimação pelo procedimento, cit.).

(*) Luiz Antônio Rizzatto Nunes é professor de Direito, Mestre e Doutor em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP); Livre-Docente em Direito do Consumidor pela PUC-SP e Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo.

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