(*) Ucho Haddad
O Brasil vive um perigoso e preocupante momento, em que as constantes ameaças à democracia, por parte de Jair Bolsonaro e de seus assessores e insanos apoiadores, escrevem o cardápio do cotidiano nacional, como se o Estado de Direito simplesmente inexistisse. E ninguém, até mesmo com lampejos de bom-senso, pode permitir que as duras conquistas pós-ditadura escorram entre os dedos apenas porque um déspota de quinta acredita ser o Brasil um reguengo do extremismo direitista.
Quando afirmei, em diversas ocasiões, que, além de desprovido de competência, Bolsonaro representava uma seríssima ameaça à democracia, não o fiz por implicância ideológica ou “pinimba” de qualquer natureza, mas por conhecer a canhestra trajetória política de quem infelizmente chegou ao comando do País.
Demonstrando de forma recorrente uma descontrolada afeição pelo totalitarismo, o presidente da República está sempre pronto para sufocar a liberdade, em que pese o fato de nas últimas semanas ter adotado o estilo “paz e amor” por mera conveniência. Mesmo assim, Bolsonaro não me engana. Assim como não engana a classe política, que por interesses escusos ou proxenetismo puro e simples aceita bater palmas para um maluco dançar.
Bajulador confesso do chefe do Executivo e exalando sabujice nauseante, André Mendonça, ministro da Justiça, apresenta-se como estafeta de luxo de um candidato a ditador, que precisa dos conhecimentos jurídicos do subordinado para levar adiante suas pretensões totalitaristas. Circulando pela Esplanada dos Ministérios com o “Vade Mecum” preso às axilas, Mendonça não se avexa em atropelar a democracia para defender os interesses do “capo’. E o faz como se o governo fosse uma Borgata tupiniquim, quando, na verdade, deveria cumprir a lei e atender aos interesses da sociedade.
O que se vê com o avanço dos dias é uma disposição deliberada da cúpula do governo de calar opositores e incensar cada vez mais a horda de apoiadores do presidente, dando a entender que a qualquer momento o “forte apache” que se instalou no Palácio do Planalto pode engendrar um golpe contra a democracia. Os palacianos generais de pijama, que há muito deveriam estar a cochilar na cadeira de balanço da sala de visitas, fazem cara de mau na esperança de amedrontar a opinião pública. Como escreveu em “Poeminha do Contra” o genial e saudoso Mario Quintana, “todos esses que aí estão atravancando meu caminho, eles passarão… Eu passarinho!”. Em suma, devolvam à prateleira o plano macabro, pois ditadura nunca mais.
André Mendonça, do alto de subserviência parva, faz ouvidos moucos para os destampatórios e escândalos da “famiglia”, ao mesmo tempo em que ousa invocar a Lei de Segurança Nacional (LSN) para investigar o jornalista Hélio Schwartsman, que em contundente artigo publicado na “Folha de S.Paulo” abordou a crise da Covid-19, não sem antes afirmar que torce para que Bolsonaro morra vítima da doença que tornou-se alvo do descabido negacionismo oficial.
O ministro da Justiça pode até ignorar o fato de que existir, por si só, é um ato político, assim como a existência em qualquer situação ou profissão exige conhecimentos rasos de filosofia e sociologia, sem os quais é impossível inserir-se no contexto social, mas fechar os olhos à realidade democrática é caso de polícia. E se nessa queda de braços há quem entenda de filosofia, esse por certo é Schwartsman. Se Mendonça age, de maneira condenável, em nome do próprio sonho de chegar ao Supremo, assim como fazem alguns outros candidatos que se colocam a serviço de um governo trêfego, é porque chegou o momento de o brasileiro sair da zona de conforto.
Como ainda não retornamos à era plúmbea, entendo que está plenamente garantido o direito constitucional à livre manifestação do pensamento. E querer calar a imprensa, no todo ou individualmente, não é a melhor receita para um tiranete de camelô que, sem ter mostrado a que veio, sonha com a reeleição. Escreveu certa feita o filósofo francês Joseph-Marie de Maistre (1753-1821): “Toda nação tem o governo que merece” (“Toute nation a le gouvernement qu’elle mérite”).
O direito à livre manifestação do pensamento não é absoluto, até porque deve ser pautado por responsabilidade e coerência, mas André Mendonça, no papel de causídico de plantão de um governo pífio e perdido, deveria compreender que o chefe apostou todas as fichas na polarização política, na cizânia da sociedade e principalmente no discurso de ódio. E não se colhe rosas após semeadura de espinhos.
Se as pesquisas de opinião mostram que Bolsonaro tem a aprovação de um terço dos brasileiros, os outros dois terços podem pensar o que bem entender a respeito do presidente, podendo, inclusive, vociferar esse pensamento. Resumindo, se alguns adulam o presidente da República como se fosse líder de seita, outros, a maioria, podem desejar que ele desapareça do mapa. É abissal a distância entre o desejo e o ato em si.
Aliás, há Brasil afora legiões de pessoas que sentem asco diante da imagem do presidente e do ruído dos seus costumeiros destampatórios. Hélio Schwartsman pode ser uma dessas pessoas que não suportam a figura e a fala do presidente, mas nem por isso deve ser alvo de ação persecutória que remonta à ditadura militar. O jornalista tem o direito de escrever que torce pela morte de Bolsonaro, assim como o presidente sentiu-se à vontade para tratar com desdém e zombaria as milhares de mortes provocadas pelo novo coronavírus. Nem por isso a LSN foi acionada para intimidar um desalmado que flerta com a ditadura e homenageia torturadores aqui e acolá. Ninguém está acima da lei, ou seja, a exemplo do que estabelece a Carta Magna, “o pau que bate em Chico, bate em Francisco”.
Não será na boleia do auxílio emergencial que a irresponsabilidade genocida de Bolsonaro no âmbito da pandemia sairá de cena ou cairá no esquecimento. Qualquer governante com parcas pinceladas de massa cinzenta sabe que em cenário de tragédia, como o provocado pela Covid-19, a melhor maneira de garantir a permanência no cargo é manter a opinião pública sob controle, evitando uma rebelião popular. Como o brasileiro é simultaneamente preguiçoso e ignorante em termos políticos, uma esmola social qualquer é suficiente para anestesiar a consciência da massa. Quando cessar o auxílio emergencial, voltarei ao tema.
Alguém, acostumado a disparar salamaleques de encomenda na direção de Bolsonaro, há de dizer que o direito à liberdade de expressão que vale para Hélio Schwartsman deveria valer para aqueles que ameaçam de morte os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Há uma diferença semântica entre ambas as situações.
O jornalista externou, em sentido figurado, sua repulsa ao comportamento de Bolsonaro diante da crise de Covid-19, criminosamente politizada por alguém que tinha a obrigação de centralizar o combate a um inimigo desconhecido e implacável. Não obstante, Schwartsman não ameaçou de morte o presidente da República, apenas colocou pitadas de fel no seu artigo. No contraponto, os apoiadores de Bolsonaro que ofendem e ameaçam de morte os ministros do Supremo recorrem a detalhes da vida de cada um, como se os magistrados estivessem sob o monitoramento contínuo de uma canalha de aluguel e muitíssimo bem remunerada com o suado dinheiro do contribuinte.
Ao contrário de Hélio Schwartsman, meu desejo não é que o presidente morra por isso ou por aquilo. E se isso acontecer, que seja porque chegou sua hora. Meu desejo, de fato, não só por convicção, é que ele continue vivo, mesmo insistindo na vitimização, para que sinta os efeitos colaterais de suas costumeiras e infindas patacoadas como presidente. Além disso, ao sugerir a morte de Bolsonaro, sempre no campo da figura de linguagem, é preciso admitir que abre-se caminho para um néscio tresloucado e conhecido, que despreza a vida e atenta contra a liberdade, ser guindado ao panteão dos heróis nacionais.
Isso posto, o melhor no momento, na minha modesta opinião, é deixar Jair Bolsonaro sangrar no rastro da ode ao desvario em que se transformou o governo e dos bisonhos compromissos de campanha assumidos com a sempre bastarda e hipócrita elite brasileira, que continua a encher a burra à sombra do sacrifício hercúleo dos desvalidos, agora transformados em massa de manobra de um ditadorzinho barato e sobranceiro travestido de defensor da democracia.
Por mais frágil que seja, a democracia não tem preço. E defendê-la é dever de todo cidadão de bem. Faço minhas as sábias palavras de Darcy Ribeiro: “Só há duas opções nesta vida: se resignar ou se indignar. E eu não vou me resignar nunca.”
(*) Ucho Haddad é jornalista político e investigativo, analista e comentarista político, escritor, poeta, palestrante e fotógrafo por devoção.
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