Comentários à Portaria nº 2.282/2020 do Ministério da Saúde

(*) Gisele Leite

As novas regras propostas em 28.8.2020 pelo Ministério da Saúde (Portaria nº 2.282/2020) (1), para ter acesso ao aborto legalmente permitido em razão de gestação decorrente de estupro. Em verdade, conforme criticam os principais especialistas, o novo texto obriga os profissionais de saúde a avisarem a polícia quando atenderem os pacientes que peçam o aborto de gestação em razão de estupro.

O que poderá causar constrangimentos e medo as vítimas que já sofreram estupro e carregam uma gestação indesejada. Aliás, a Lei 13.931/2019 já admitia a determinação de notificação que doravante fora incorporada na nova portaria para a rede de saúde no país. Importante sublinhar que a notificação obrigatória sobre indícios de violência sexual sofrida pela paciente fora instituída pela Lei 13.931/2019.

Tece a portaria minuciosas medidas a serem cumpridas pelas equipes de saúde (2) para que enfim, as gestantes tenham acesso ao aborto legal. Entre estas, há a exigência de que os médicos informem à mulher a possibilidade de visualizar o feto em exame de ultrassonografia, o que fez os especialistas acreditarem que se trata de um modo de demover a vontade da paciente. Igualmente determina o texto legal que as pacientes assinem termo de consentimento constando um rol de possíveis complicações oriundas do aborto.

O aborto legal só é permito no país em apenas três casos, a saber: gravidez decorrente de estupro, casos de risco de vida da gestante e de fetos anencefálicos. A portaria é publicada e assinada pelo ministro interino da Saúde, o General Eduardo Pazuello e, justifica a medida como sendo necessária para garantir aos profissionais de saúde a segurança jurídica efetiva no caso de realização do aborto.

No entanto, os especialistas veem que tais mudanças representam uma tentativa de intimidar e constranger as vítimas que buscam o acesso ao procedimento abortivo nos casos previstos em lei.

Afinal, o aborto legal se transforma um registro de delegacia policial, criando uma série de barreiras com claro viés ideológico, com o fito de amedrontar as mulheres que optem pelo aborto legal.

A notificação à autoridade policial feita pelo médico bem como os demais profissionais de saúde os responsáveis pelo estabelecimento de saúde que acolheram a vítima de estupro grávida, ou quando houver indícios ou confirmação do crime de estupro.

Afirma ainda o texto legal que os profissionais devem ainda preservar e entregar à polícia as possíveis evidências materiais do crime de estupro, tais como os fragmentos de embrião ou feto com vistas à realização de confrontos genéticos que poderão levar à identificação do respectivo autor do crime. Prevê ainda o texto quatro fases (3) para o procedimento que vai da justificação até a autorização do aborto nos casos admitidos em lei.

E, boa parte das medidas já existiam em outra portaria de 2005. Continua o texto legal a exigir um relato circunstanciado do evento, o qual deve ser realizado pela gestante a dois profissionais de saúde e devidamente documento contendo os seguintes dados, a saber: local, dia e hora do fato, tipo de violência, descrição do agressor e testemunhas se houver.

Noutra etapa, o médico atendente deverá emitir parecer técnico contendo dados dos exames clínicos e outros documentos, como o termo de aprovação do procedimento de interrupção de gravidez que deverá ser assinado por três pessoas da equipe médica, e outro termo de responsabilidade, que deverá ser assinado pela gestante ou representante legal.

Enfim, a nova portaria do Ministério da Saúde dificulta e torna o acesso ao aborto legal ainda mais doloroso, pois transforma o procedimento médico em caso de polícia. Dez deputadas da bancada feminina da Câmara já protocolaram um projeto de Decreto legislativo para sustar a referida portaria pois é encarada como uma negativa reação ao recente caso de autorização judicial para interrupção de gravidez de uma criança estuprada de apenas dez anos e, não se baseia em nenhuma norma técnica conforme deveria se pautar as políticas públicas.

(1) https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-2.282-de-27-de-agosto-de-2020-274644814

(2) A equipe de saúde multiprofissional deve ser composta, no mínimo, por obstetra, anestesista, enfermeiro, assistente social e/ou psicólogo.

(3) Art. 5º A terceira fase se verifica com a assinatura da gestante no Termo de Responsabilidade ou, se for incapaz, também de seu representante legal, e esse termo conterá advertência expressa sobre a previsão dos crimes de falsidade ideológica (art. 299 do Código Penal) e de aborto (art. 124 do Código Penal), caso não tenha sido vítima do crime de estupro.
Art. 6º A quarta fase se encerra com o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, que obedecerá aos seguintes requisitos:
I – o esclarecimento à mulher deve ser realizado em linguagem acessível, especialmente sobre:
a) os desconfortos e riscos possíveis à sua saúde;
b) os procedimentos que serão adotados quando da realização da intervenção médica;
c) a forma de acompanhamento e assistência, assim como os profissionais responsáveis; e
d) a garantia do sigilo que assegure sua privacidade quanto aos dados confidenciais envolvidos, passíveis de compartilhamento em caso de requisição judicial;
II – deverá ser assinado ou identificado por impressão datiloscópica, pela gestante ou, se for incapaz, também por seu representante legal; e
III – deverá conter declaração expressa sobre a decisão voluntária e consciente de interromper a gravidez.

(*) Gisele Leite – Mestre e Doutora em Direito, é professora universitária.

As informações e opiniões contidas no texto são de responsabilidade exclusiva do autor, não representando obrigatoriamente o pensamento e a linha editorial deste site de notícias.

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