Ainda pode haver mesmo democracia?

(*) Gisele Leite

A democracia contemporânea enfrenta um problema crucial, ainda existe o povo? Onde está demos? E, ainda existe kratos?

Teria o povo em sua imensa diversidade se perdido de sua totalidade única? Afinal, para que exista a democracia é preciso que o povo exerça o poder. De sorte que se duvidamos que exista realmente um povo… Nem sempre o que os revolucionários afirmaram ser o povo, realmente o era… Por vezes, afirmaram que o povo ainda não existe, mas precisa ser construído, formado ou até restaurado. E, existem realmente diversas estratégias para criá-lo.

Em verdade, o romantismo parece ser o especialista mais dedicado pois investiu no folclore, na retomada de antigas tradições culturais, apelos afetivos, tornou línguas desprezadas, fez camponeses simplórios galgarem a escrita e, assim, afinal terem a dignidade de línguas nacionais e literárias.

Em larga medida a democracia evoluiu particularmente no século XIX sobretudo na Europa oriental e, igualmente na Ásia e África. Mas, foi a Reforma que traduziu a Bíblia em vários idiomas e a elevou a um precioso estatuto.

Já no século XX surgiram desafios oponentes como o da então jovem URSS que pôs por escrito em muitas línguas em seu território toda a formação de povo. Utilizou o famélico recurso nacional-popular que em síntese força a identidade da nação para residir em seu povo.

Em verdade, com a dinâmica contemporânea entrou em xeque a possibilidade concreta de ainda existir um povo. Sua produção tornou-se complexa e ultrapassou o velho embate capital versus trabalho, ou a divisão bipolar composta de explorados e exploradores que não consegue abarcar todos os modos de inserção na economia do mundo. De fato, existe posições intermediárias como a classe média ou dos prestadores de serviços que longe de estarem à beira de extinção, se desenvolveram muito.

Assim, passamos do ideário romântico de uma cultura nacional e popular, em oposição a cultura cosmopolita que rejeitava as classes pobres e puras, tal modelo nacionalista não consegue entender a importância da evolução e crescimento do ser humano de sua liberdade e ainda do contato com outras culturas. E, ainda mais, do contágio ideológico. Pois acreditar na pureza é apostar na ficção.

O povo se pulveriza em vários povos, e cada vez menos forjam identidades com fulcro na nacionalidade ou em seu lugar na produção de bens e serviços. Entre esses subpovos estão mulheres, negros, gays, trans, os sem-terra, os operários, a comunidade universitária e assim por diante.

Lembremos que a definição marxista postulava um critério de base, a produção e, outro romântico, a nacionalidade. Eis o desafio de criar um só critério quando se está diante de grupos tão díspares e absolutamente distintos em suas trajetórias histórico-sociais? A rigor, o povo seria um só, o mundial. O que não responde a questão quanto a identidade.

Questiona-se também se há ainda o poder como a democracia conforme fora concebida a duzentos anos, como sócia da noção de revolução e de um indigitado progresso. Emancipadora. Recordemos que durante a Guerra Fria, os EUA apoiaram abertamente governos mais reacionários, tal qual agora com Donald Trump que demonstra ser explicitamente preconceituoso.

Portanto, se não mais existe o povo, potencialmente unido como sujeito de decisivas transformações na história da humanidade, tampouco existe um centro de poder a conquistar. Se nas primeiras democracias, o poder era herdado do sentido que tivera no Antigo Regime. Onde a soberania do rei era substituída pela do povo, mas era tão centralizada quanto a deste.

Enfim, tomar a Bastilha era conquistar o centro do poder. Da soberania que designou a teoria do poder dominante em quase todo planeta, nos últimos anos, a etimologia da palavra vem mesmo dos reis.

Como podemos acreditar num poder representado por um capitão bronco, tosco e raso que mal se expressa, que fala aleivosias públicas e impropérios aos jornalistas e, não se cala jamais, dando azo a um gabinete repleto de militares de alta patente como generais, que pela primeira vez na vida, experimentam a subversão de estarem submetidos ao capitão bronco. Seria vingança?

A propósito, o vice-presidente General Mourão demonstra ser explicitamente superior em educação e em sabedoria política. Cumpre elogiá-lo, não fosse a devastação na Amazônia.

Humilha publicamente ministros, assessores e, transforma os que restam em lacaios subservientes sem direito a dissentir. Além da gritante infantilidade, há o jogo político com o Centrão repleto de nanicos com seus interesses óbvios e disponíveis.

Se não existe povo e nem existe poder. A anarquia reinante impregnada de fascismo produz suas vítimas contumazes. Seja na bipolarização sem lítio dos que apoiam ou não apoio o governo brasileiro. Ou na subserviência cretina dos que seguem cegamente só visando o próprio benefício. Há de se lembrar que tudo na vida tem um preço. E, um dia, a fatura chega. O vencimento iminente será pago com o retrocesso social e infelicidade de muitos. Principalmente daqueles que não conseguem gritar.

(*) Gisele Leite – Mestre e Doutora em Direito, é professora universitária.

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