(*) Marli Gonçalves
Ela sensivelmente aprendeu a “falar” nesse último ano em que ficamos mais juntas ainda, uma fazendo companhia à outra. Agora eu podia saber quando ela queria comer, carinho, chamar a atenção, quando estava tendo uma crise de ciúmes quando eu dividia a atenção com outra pessoa ou coisa. Seus miados tinham até hora marcada, reloginho. Agora, depois de 13 anos, vou ter de aprender a viver sem minha gatinha linda, vira-lata, branca, vesga e encardida, a Love, a muito amada.
Creio que nem preciso dizer como estou me sentindo, porque acredito que você aí talvez já possa ter passado por isso, de perder um animalzinho de estimação. Essa dor quase inexplicável, esse vazio que fica nos espaços que eles tão bem sabem preencher, inclusive em nossas vidas, nos distraindo com as suas artes, dando alegria, fazendo companhia. Parece, eu sei, esquisito demais, até fútil, falar sobre esse sofrimento nesse momento em que mais de 260 mil pessoas perderam a vida só aqui em nosso país, vítimas dessa roleta russa que é a pandemia de covid, e certamente deixando seus parentes e amigos inconsoláveis. Sei e tenho sofrido perda de amigos e considerados nesse último ano. Sofri. Chorei.
Mas gente é diferente, difícil explicar como. O animalzinho que depende da gente para tudo cria outro tipo de vínculo para os que lhe dedicam amor. A minha gatinha já levava amor até no nome, Love, escolhido imediatamente ao pousar os olhos a primeira vez naquele cisquinho peludo. Chegou junto do irmão, o negro de olhos amarelos que vive com o jornalista Carlos Brickmann, e que a ele deu o sugestivo nome de Vampeta, e, claro, um time para o qual torcer.
Pequenina, sempre esguia, Love tinha amor no nome, mas não era gente boa com quem não conhecia, ou que invocava, e logo arreganhava seus dentes mostrando exatamente que não era de brincadeira, e pensando que era uma onça. A careca de um ex-companheiro meu que o diga. Quantas vezes ela ficou de tocaia em cima da geladeira esperando que ele passasse distraído e …zap! Lá tirava sangue e saia correndo, sumia, certa de que tinha feito algo errado. Eu mesma, e para mim ela será eterna nas marcas que deixou em minha pele com suas garras afiadas, às vezes até sem querer; outras, para tomar qualquer remédio ou demonstrar que não estava a fim. Ô personalidade forte!
13 anos. Foi companhia de meu pai até a sua morte há três anos. Parecia que o guardava. Se ele levantava, ela acordava e ia atrás, na proteção. Proteção que depois dedicou a mim, todas as noites dormindo na beira da minha cama, virada para a porta, sentinela. Vira-lata de siamês, por isso encardida, trouxe da raça além do rabo “quebrado”, o atributo de ser guarda. Seus olhinhos azuis e vesgos tudo vigiavam.
Vesgulha, de quem ela gostava, gostava. Tanto que hoje enquanto escrevo, um dia após ela ir para esse lugar que deve ser um céu, já recebi mensagens desses “tios” de outros lugares do mundo e do país. E o tio verdadeiro, meu irmão, esse era por ela adorado, e parecia amar a quantidade de nomes que ele inventava para chamá-la, praticamente um por dia, pororoca, caboquinha, xumbreguinha, uma infinidade, cada um mais engraçado do que o outro. Ela atendia.
Tantos lugares ela inventou dentro da casa, alguns muito inusitados, que a preenchia totalmente, e hoje ainda a vejo para onde olho – e de onde ela me mirava, escutando atenta como se entendesse tudo quando com ela eu conversava, quase me confessava. E muito conversamos, e muito ela sabia de como exatamente eu estava ou me sentia. Para os bichos não adianta mentir, disfarçar, eles sabem.
Como dizia, nesse último ano ela, novidade, tanto tempo juntas nesse isolamento, aprendeu a falar, vocalizar, miar de diferentes formas, algumas até desafinadas e com horário, como o do “jantar”, seis, seis e meia da tarde. Ou se aboletava em cima do computador, ou passando para lá e para cá em cima das teclas enquanto eu escrevia, e olhando bem para a minha cara como quem dissesse “Como é que é?”.
Minha Love foi embora. Há poucos dias descobrimos um “monstro” crescendo na parede de seu intestino, daí emagrecia. O que pude fazer, fiz, e mais faria para curá-la ou para que não sofresse – isso jamais seria permitido. Mas ela foi embora, junto de mim, de sua veterinária, no calor dos meus braços, no carinho que sussurrei em suas orelhinhas enquanto a sua vida se apagava diante de mim. Não foi fácil ver, mas ela foi ouvindo todo o tanto de amor que levava em seu próprio nome.
Eu precisava contar para vocês, numa homenagem que só eu sei o quanto está difícil por no papel. Por favor, entendam, não é gente, mas era minha familinha, minha eterna filhotinha, de quem eu era mãe.
(*) Marli Gonçalves – Jornalista, consultora de comunicação, editora do Site Chumbo Gordo, autora de “Feminismo no Cotidiano – Bom para mulheres. E para homens também”, pela Editora Contexto. À venda nas livrarias e online, pela Editora e pela Amazon.
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