A saga de Felipe Neto

(*) Gisele Leite

A lei penal brasileira vigente prevê três tipos penais distintos que perfazem os chamados crimes contra a honra, a saber: calúnia, que é imputar falsamente a alguém conduta definida como crime; a difamação, que é imputar a alguém fato ofensivo à sua reputação e, por fim, a injúria, que é ofender a dignidade ou o decoro de alguém. Tais crimes contra a honra se praticados contra o Presidente da República possuem penas majoradas de um terço (1).

Devemos ressaltar que o texto constitucional brasileiro conferiu aos parlamentares uma imunidade que abrange suas opiniões, palavras e votos. Porém, não se trata de imunidade irrestrita, nem significa que poderá atentar contra o Estado Democrático de Direito. Esse foi o caso do deputado federal Daniel Silveira.

Em 14.3.2021, o Ministro Alexandre de Moraes, do Supremo, determinou a prisão domiciliar para Daniel Silveira, o parlamentar preso preventivamente após divulgar vídeo contendo ataques contra os integrantes do STF e apologia ao AI-5. Além da prisão domiciliar, o acusado receberá tornozeleira eletrônica restando impedido de fazer uso de suas redes sociais. As infrações penais cometidas composta pelas condutas do deputado federal está tipificada nos artigos 17, 22, 23 e 26 da Lei nº 7.170/83.

O fato de não existir tecnicamente o mandado de prisão em flagrante, não invalida a prisão do referido deputado, aliás, após a audiência de custódia, se transformou em preventiva. E, ainda, recentemente, foi novamente transformada em prisão domiciliar com uso de tornozeleira eletrônica. Convém ainda destacar que a situação de flagrante permanente se materializava tendo em vista que o vídeo postado e, ainda, no ar, na época da prisão do indiciado. Ademais, a referida prisão igualmente fora confirmada pela Câmara dos Deputados por um placar de 364 votos a favor e 130 contra.

A Lei nº 7.170, de 14 de dezembro de 1983 também chamada de Lei de Segurança Nacional ampliou o tipo penal de calúnia ou difamação contra as autoridades, trazendo como sujeitos passivos ou vítimas, além do Presidente da República, o Presidente do Senado, o da Câmara dos Deputados e, ainda, do Supremo Tribunal Federal, aplicando pena de reclusão de um a quatro anos.

Lembremos que essa Lei de Segurança Nacional é herança resultante do regime ditatorial pelo qual o país vivenciou entre os anos de 1964 à 1985, definindo os crimes contra a segurança nacional e as condutas delituosas previstas como os atos de devastar, saquear, extorquir, roubar, sequestrar, manter em cárcere privado, incendiar, depredar, provocar explosão, praticar atentado pessoal ou atos de terrorismo.

De fato, quando Felipe Neto chamou o ex-capitão e atual Presidente da República de genocida cometeu, aparentemente, crime de calúnia previsto no artigo 26 da Lei nº 7.170/1983. Por essa razão, recebeu intimação policial em março de 2021 para responder por crime contra a segurança nacional, por ter chamado o atual presidente da república de genocida.

De acordo com informações jornalísticas, a iniciativa foi do filho do atual presidente, o vereador Carlos Bolsonaro, que igualmente denunciou o influenciador digital por corrupção de menores.

O Estatuto da Criança e do Adolescente, a Lei nº 8.069/1990 tipifica em seu artigo 244-B, o crime de corrupção de menores, in litteris: “Corromper ou facilitar a corrupção de menor de 18 (dezoito) anos, com ele praticando infração penal ou induzindo-o a praticá-la: Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos.”

Evidentemente, não se cuida da corrupção sexual de menores (crianças ou adolescentes), prevista em algumas figuras típicas do Código Penal. A corrupção de criança ou adolescente tratada no presente dispositivo decorre da deturpação da formação da personalidade do menor de 18 (dezoito) anos, no específico aspecto de sua inserção na criminalidade. Constituem condutas típicas do delito “corromper” (perverter, estragar) e “facilitar a corrupção” (tornar fácil a corrupção, a perversão). As formas de conduta devem ser desenvolvidas praticando a infração penal com o menor de 18 anos ou induzindo-o a praticá-la. Na primeira hipótese, o agente tem o menor de 18 anos como seu coautor ou partícipe na infração penal.

Cumpre relembrar que o atual Governador do Estado de São Paulo, João Doria, também já chamou Bolsonaro de genocida. A reação inesperadamente exótica quando interpelado o Presidente da República a respeito dos alarmantes índices de óbitos de pessoas pelo COVID-19, quando retrucou: “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre.” Vivemos tempos sombrios, e a falta de empatia e respeito pelas consequências geradas pela pandemia de coronavírus, tem suscitado vários adjetivos pouco elegantes.

Afinal, a doença deveria ser enfrentada e, não desdenhada. Tais palavras de um presidente da República, anunciando seu descaso em forma de cinismo e sarcasmo, já seriam suficientes para uma intervenção judicial ou legislativa. Porém, não obstante existir mais de sessenta pedidos de impeachment, nada foi feito.

O crime de genocídio é previsto no Brasil pela 2.889/1956 que pune quem com a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como tal: a) matar membros do grupo; b) causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo; c) submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial; d) adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo; e) efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo. As penas já estão estabelecidas no Código Penal, ao qual a lei remete.

Ao que tudo indica, há tentativa de obter o silêncio via intimidação. Justificou Felipe Neto que a alcunha pejorativa atribuída ao Presidente se deve por ausência de política de saúde pública em meio a presente pandemia, com o saldo de milhares de óbitos de brasileiros.

Igualmente foi indiciado o youtuber por divulgação de material impróprio para crianças e adolescentes, sem fixar a classificação etária de vídeos em seu canal no Youtube.

Cumpre, ainda, destacar que os crimes contra a segurança nacional são da competência da Justiça Federal e dos juízes federais de primeiro grau, conforme prevê o artigo 109, V da Constituição Federal brasileiro de 1988.

Infelizmente, a vigente a Lei de Segurança Nacional não avançou no plano de garantias do réu e da sua defesa. Havendo somente certa atenuação do rigor anterior. Evidentemente, que tais dispositivos foram revogados com a promulgação da Constituição Cidadã, pois esta prevê que ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo em casos de transgressão militar ou crime propriamente militar definidos em lei.

Trata-se de direito fundamental do preso de ser informado de seus direitos entre os quais de permanecer calado, sendo-lhe assegurada ainda a assistência da família e de advogado (art.5º, LXIII, da CF/1988).

Mesmo quando a defesa alegava, subsidiariamente, a lei não ter sido recepcionada pela CF/1988, esse não foi um debate frequentemente feito nos votos dos ministros.

Em decisão liminar na Justiça do Rio de Janeiro suspendeu a investigação da Delegacia de Repressão aos Crimes de Informática contra Felipe Neto, que tinha depoimento marcado para 18.3.2021, por chamar Bolsonaro, de genocida. Em decisão, a juíza Gisele Guida de Faria destacou que a competência do caso não é da Polícia Civil, mas sim, da Polícia Federal.

Em tese, por ser crime praticado contra a honra do Presidente da República e previsto na Lei de Segurança Nacional, sua apuração somente poderia ter sido iniciada por requisição do Ministério Público, de autoridade militar responsável pela segurança interna ou do Ministro da Justiça. A juíza expressamente classificou a investigação como flagrante ilegalidade.

A doutrina questiona como a Lei de Segurança Nacional sendo uma lei da ditadura sobrevive na democracia. Tal questionamento serviu para o comentário feito pelo Ministro Barroso, ao finalizar seu voto in verbis: “Gostaria de fazer um breve registro. Já passou a hora de nós superarmos a Lei de Segurança Nacional, que é de 1983, do tempo da Guerra Fria, que tem um conjunto de preceitos inclusive incompatíveis com a ordem democrática brasileira. Há, no Congresso, apresentada de longa data, uma nova lei, a Lei de Defesa do Estado Democrático e da Instituições, que a substitui de maneira apropriada. Portanto, apenas para não parecer que estamos cogitando aplicar a Lei de Segurança Nacional num mundo que já não comporta mais parte da filosofia abrigada nessa Lei, que era do tempo da Guerra Fria e de um certo tratamento da oposição como adversários”. In: STF, Tribunal Pleno RC 1472/MG, Relator: Min. Dias Toffoli, j.25.5.2016, p.21.

Aduziu ao voto do Min. Barroso, o Ministro Lewandowski, in litteris: “Vossa Excelência tem razão. E há um aspecto importante, ao meu ver: com a superação da Carta de 1969, a maior parte do fundamento constitucional da Lei de Segurança Nacional caiu por terra. Portanto, hoje certamente ela não seria recepcionada pela nova Ordem Constitucional em sua maior parte, (…)”.

Ao que o Ministro Barroso complementou: “Acho que ela ficou esquecida. Mas é sempre bom relembrar que a Lei de Segurança Nacional já não expressa os valores contemporâneos da Constituição de 1988”. Desse modo, a Corte unanimemente afastou a aplicação da LSN no caso. In: STF, Tribunal Pleno RC 1472/MG, Relator: Min. Dias Toffoli, j.25.5.2016, p.21. Vide o inteiro teor da decisão em comento no link: https://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/772369209/recurso-crime-rc-1472-mg-minas-gerais-9959568-8320141000000/inteiro-teor-772369219 Acesso em 17.3.2021.

Realmente, vige flagrante incompatibilidade da Lei de Segurança Nacional e, a Constituição Brasileira de 1988, percebe-se ainda que ao permanecer sendo invocada, apesar de pouco delimitada na democracia vigente, somente vem a alimentar a insegurança jurídica pelos riscos que pode representar aos valores inerentes e fundamentais ao Estado Democrático de Direito.

Destaque-se que não ocorreu o crime de injúria contra o Presidente da República quando a intenção da pessoa se limita a narrar um fato (animus narrandi), descrevendo objetivamente aquilo que viu ou ouviu. Sendo muito comum no papel exercido pela imprensa ou quando do depoimento de testemunhas em juízo. Portanto, não houve crime contra o Chefe do Executivo no caso de a vontade do agente se dirige à crítica honesta e pertinente, com o propósito de auxiliar o criticado (animus criticandi).

Por derradeiro, não configura crime contra honra, o fato de se buscar apenas autodefesa (animus defendendi) quando alguém se defende de argumentos ou fatos proferido pelo Presidente da República contra a pessoa, isto porque o Código Penal brasileiro assegura a legítima defesa.

Também, não haverá o crime de injúria, se a pessoa unicamente almejou corrigir, animus corrigendi, seja como mentor, comentarista, ou pessoa com maior conhecimento de causa ou instrução sobre determinado assunto ou tema. A razão de não configurar a injúria reside no exercício regular de direito.

Igualmente, não configura a injúria contra o Presidente da República o fato de a pessoa somente querer aconselhar, animus consulendi, é o caso de assessores, conselheiros, secretários, ministros dentro outros, incluindo mesmo o cidadão comum. Frise-se que o elemento subjetivo do tipo dos delitos previstos na Lei 7.170/1983, é o dolo específico que o diferencia e firma positivamente a tipicidade do crime em questão, permitindo, assim, a superação do aparente conflito de normas, entre a Lei de Segurança Nacional e o Código Penal Brasileiro.

O dolo específico está presente nos tipos penais incongruentes. O tipo penal incongruente é aquele que exige além do dolo genérico uma intenção especial, um requisito subjetivo transcendental. Para Oscar Stevenson o que caracteriza o dolo é a vontade e a inteligência. A simples vontade do resultado caracteriza, o dolo genérico; a vontade dirigida a um fim especial caracteriza o dolo específico.
Enfim, por estar ausente o dolo específico, Felipe Neto não cometeu crime contra a segurança nacional.

(1) Exemplos didáticos. É calúnia. Maria falou para João que viu ele matar outra pessoa com a chave inglesa na biblioteca. É difamação. Quando Maria, contando para Berenice que João tinha um caso amoroso com José. É injúria. Quando Maria conta para Berenice que João é canalha.

Referências:

FRAGOSO, Heleno Cláudio. Para uma Interpretação Democrática da Lei de Segurança Nacional, Jornal O Estado de São Paulo, p. 34, abr. 1983.

FREIRE, Rafael Pina de Souza. O cidadão pode se referir à Presidente da República, sem que cometa crime de injúria? Análise do Art. 141, I do Código Penal e excludentes do crime de injúria. Disponível em: https://rpisouza.jusbrasil.com.br/artigos/240511879/o-cidadao-pode-se-referir-a-presidente-da-republica-sem-que-cometa-crime-de-injuria Acesso em 17.3.2021.

KIRSZTAJN, Laura Mastroianni. A Lei de Segurança Nacional no STF: como uma lei da ditadura vive na democracia? Disponível em: http://www.sbdp.org.br/wp/wp content/uploads/2019/03/LauraMonografia.pdf Acesso em 17.3.2021.

STEVENSON, Oscar. Da exclusão de crime (causas não previstas formalmente). São Paulo: Saraiva, 1941.

(*) Gisele Leite – Mestre e Doutora em Direito, é professora universitária.

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