De Pero Vaz a Mandetta, passando por Getúlio, a saga brasileira no reino das cartas

(*) Waldir Maranhão

Desde o seu descobrimento até a CPI da Covid, o Brasil tem enfrentado percalços históricos, muitos iniciados por cartas polêmicas e devastadoras, à exceção da escrita pelo português Pero Vaz de Caminha, em 1500, por ocasião do descobrimento do que se acreditava ser o Mundo Novo.

Em sua missiva ao rei de Portugal, o escrivão oficial da frota comandada por Pedro Álvares Cabral relatou as primeiras impressões sobre a outrora Pindorama, que com o passar do tempo foi rebatizada como Brasil.

Ao dirigir-se a Dom Manuel I, o escriba cabralino fez uma breve narrativa sobre os indígenas de então, com quem os portugueses mantiveram contato e iniciaram os escambos.

“A feição deles é serem pardos, um tanto avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem cobertura alguma. Nem fazem mais caso de encobrir ou deixa de encobrir suas vergonhas do que de mostrar a cara. Acerca disso são de grande inocência”, escreveu Pero Vaz.

Caminha, que não era visionário muito menos vidente, sequer imaginou o furdunço em que se transformaria aquela vastíssima porção de terra virgem habitada por pardos que fugiam ao padrão de beleza europeu, apesar dos “bons rostos e bons narizes, bem feitos”.

A carta enviada ao rei de Portugal é considerada o marco inicial do “quinhentismo”, período que reúne todas as manifestações literárias produzidas em terras brasileiras, a extensa maioria por portugueses, no século XVI.

O “quinhentismo” proporcionou encontros que até hoje, passados mais de 500 anos, influenciam a política nacional, a sociologia e outras facetas da sociedade brasileira, como a destruição das florestas, o preconceito contra o povo indígena e sua cultura, até mesmo lufadas de ódio contra os silvícolas, os verdadeiros donos da terra.

O calendário da história avançou em uma nova carta sacudiu o país. A carta-testamento de Getúlio Vargas, escrita horas antes do suicídio, foi uma mensagem ao povo brasileiro em que o caudilho, um populista de quatro costados, abusa da vitimização.

“Mais uma vez as forças e os interesses contra o povo coordenaram-se e se desencadeiam sobre mim. Não me acusam, insultam; não me combatem, caluniam; e não me dão o direito de defesa. Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha ação, para que eu não continue a defender, como sempre defendi, o povo e principalmente os humildes”, escreveu Getúlio.

“Nada mais vos posso dar a não ser o meu sangue. Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida”, avançou Getúlio na carta-testamento.

“Eu vos dei a minha vida. Agora ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na história”, concluiu.

Agora, a carta em voga é a do ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, da Saúde, endereçada ao presidente da República para alertá-lo sobre o perigo da pandemia, sem que Bolsonaro dispensasse a devida atenção ao tema.

A mais grave crise sanitária dos últimos cem anos fez com que 415 mil brasileiros tombassem diante de um inimigo desconhecido e invisível, que age sem dó nem piedade.

A carta de Mandetta é a prova cabal e derradeira da irresponsabilidade do governo de Jair Bolsonaro no enfrentamento da crise da Covid-19. Mesmo que o presidente da República queira escapar à responsabilidade, o documento em questão na deixa saídas aos negacionistas.

Ao finalizar a carta, Mandetta ressaltou à época que “tendo em conta que a atuação do Ministério da Saúde no preparo, vigilância e resposta a pandemia pelo Covid-19, em consonância com o Regulamento Sanitário Internacional (Decreto n. 10.212, de 30 de janeiro de 2020), fundamenta-se nos fatos apurados, nas evidências científicas e na observância dos princípios e regras que alicerçam os direitos e garantias fundamentais de todo cidadão brasileiro, recomendamos, expressamente, que a Presidência da República reveja o posicionamento adotado, acompanhando as recomendações do Ministério da Saúde, uma vez que a adoção de medidas em sentido contrário poderá gerar colapso do sistema de saúde e gravíssimas consequências à saúde da população.”

Mandetta recomendou ao presidente que considerasse as recomendações cientificas para minimizar na medida do possível o efeito da pandemia, mas de nada serviu o apelo.

À parte o “quinhentismo”, que selou o destino do que somos hoje em termos de nação, o getulismo e o bolsonarismo têm suas similitudes, a começar pelo culto à personalidade de dois governantes obscuros e totalitaristas.

A exemplo do que ocorreu no fascismo, no stalinismo e no nazismo – movimentos que tiveram na proa déspotas históricos e facinorosos – o getulismo e o bolsonarismo ganharam corpo com a mesmíssima estratégia: incutir no inconsciente coletivo, por meio de maciças ações de propaganda, a figura de seus respectivos líderes.

Vargas valia-se do cinema e da televisão para impulsionar país afora o culto à sua personalidade, ao passo que Bolsonaro recorre às redes sociais e ao cercadinho montado à porta do Palácio da Alvorada, sem contar as aglomerações que promove por toda parte, quando dispara mentiras sobre um naco da sociedade que cada vez mais está tomada pela cegueira da adoração.

Fazendo contraponto à carta de Pero Vaz de Caminha, mas ao escriba português recorrendo, a missiva por Mandetta mostrou aos brasileiros que Bolsonaro “nem fazem mais caso de encobrir ou deixa de encobrir suas vergonhas do que de mostrar a cara”.

Mesmo o Brasil vivendo uma saga de cartas históricas, destaco George Orwell (1903-1950), jornalista e ensaísta britânico, que grafou: “A história é escrita pelos vencedores”.

Entre as cartas que mencionei fica evidente que a história brasileira não pode ser reescrita, mas é possível evitar que falsos vencedores nos imponham mais uma derrota.

Voltarei ao tema no próximo artigo com análise sobre o xadrez político que tem as eleições de 2022 como tabuleiro.

(*) Waldir Maranhão – Médico veterinário e ex-reitor da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA), onde lecionou durante anos, foi deputado federal, 1º vice-presidente e presidente da Câmara dos Deputados.

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