(*) Ucho Haddad
Há vinte anos decidi voltar ao Brasil para tentar salvar o País, proteger os brasileiros das garras do poder e ajudar na manutenção da democracia. Sabia que não seria tarefa fácil, mas estava disposto a mais um desafio, talvez o maior de todos. Fiz de livre e espontânea vontade, ciente de que o brasileiro é politicamente preguiçoso e acostumado à “coisa pronta”, não importando quem seja seu patrocinador, fardado ou com a foice e o martelo nas mãos.
Em nome do Brasil e dos brasileiros coloquei a vida pessoal em segundo plano, abri mão do convívio familiar, perdi momentos importantes com os filhos. Corri riscos inenarráveis, ultrapassei as fronteiras do perigo, lutei contra a maledicência dos detratores da honra alheia, driblei ameaças torpes. Ao final dos anos de chumbo, enfrentei os resquícios dos criminosos porões da ditadura – pau de arara, sessões de afogamento, terror. O que está memória ninguém apaga.
De lá para cá, muitos rotularam-me como comunista, uma gritante inverdade. Meu partido é a coerência, o Estado de Direito, o garantismo jurídico, a devoção à democracia. O tempo mostrou-se, como sempre, senhor da razão: sou filho do bom-senso, da parcimônia.
Duas décadas depois, sem um grama de arrependimento, plena é a sensação do dever cumprido. Mesmo assim, percebo que pouco ou nada mudou. Aliás, se mudanças ocorreram nos últimos anos, por certo foram na direção do pior. A semente plantei com extremo cuidado e muita convicção, cabendo aos mais novos fazê-la germinar. Nenhum recuo a essa altura é aceitável.
Volto na linha do tempo e estaciono em 1982, Itália. Naquele ano, pela primeira vez senti vergonha de ser brasileiro. Confesso não saber o que mais me envergonhou: as cobranças decorrentes das barbaridades cometidas pelos facinorosos militares ou o que vi e ouvi nos bastidores da Copa do Mundo. Desde então jamais torci pela seleção brasileira. Na verdade, publicamente assumo mais uma vez, torço contra porque não sei ser patriota a cada quatro anos. Não consigo chorar quando um jogador que enverga a “amarelinha” levanta a taça enquanto a tragédia social continua no topo do pódio.
Passados quase 40 anos, de novo sinto vergonha de ser brasileiro – não que nesse intervalo tenha me orgulhado da cidadania. Qualquer um tem o direito de me contestar, até porque sou adepto incorrigível do contraditório, desde que respeitoso, mas antes disso precisa me convencer de que estou errado. Meio milhão de brasileiros tombaram diante do coronavírus, sendo que a delinquência intelectual do presidente da República, que campeia Brasil afora, conseguiu banalizar a morte. Vergonha, vergonha, vergonha…
Minha vergonha seria igual se apenas uma pessoa tivesse morrido vítima da irresponsabilidade de um governo populista e bandoleiro. Enquanto os meios de comunicação se debruçam sobre estatísticas, como se números amainassem o caos, estou a falar de mais de 500 mil vidas perdidas, mais de 500 mil famílias destruídas, de sonhos interrompidos, de assassinato da esperança.
Por vezes me questiono o que é preciso para que o brasileiro se sensibilize diante da tragédia que continua a devastar o País. Os números atuais da pandemia representam 250 acidentes aéreos como o ocorrido no aeroporto de Congonhas em 17 de julho de 2007. E as pessoas continuam acreditando ser normal 250 aviões não conseguindo parar antes do fim da pista de pouso.
O genocida de plantão diz a torto e a direito que um dia todos hão de morrer. Essa é a ordem natural da vida, mas banalizar a morte para camuflar os desvarios de um governo miliciano é demais. E quem silencia diante da tragédia é cúmplice em crime contra a humanidade. Não há como ser diferente!
A decisão de retomar a pena não foi fácil, pelo contrário. O coronavírus me acertou em cheio, por sorte de maneira considerada mediana. Lutar contra esse inimigo invisível e mutante é um desafio e tanto. Respeito todos aqueles que lutaram e venceram a doença – não é brincadeira. Incondicional respeito tem cada um dos que perderam a batalha, pois foram bravos.
Depois de tudo o que enfrentei ao logo da vida, temer a morte não faz parte do meu dicionário. Mesmo assim, admito, sem vergonha e delongas, que tive medo de morrer. O medo não era da morte em si, mas de não poder realizar o que ainda cultivo em meus sonhos e planos. Com os 63 anos batendo à porta, não esmoreço e continuo a sonhar como se menino fosse, crente de que tudo pode ser mudado.
O carinho e o apoio de pessoas próximas e queridas e um punhado de medicamentos me ajudaram a reagir. Agiram como afiada cimitarra contra o incerto. O desafio não foi pequeno, mas moveu-me, acima de tudo, o desejo de continuar fazendo do jornalismo sério e responsável, da minha opinião crítica e isenta, a arma maior contra os desmandos palacianos. Em nome de 500 mil conterrâneos não posso me calar, mesmo que o esforço físico seja enorme.
O maldito do vírus levou-me a pensar na possibilidade de antecipar a aposentadoria. Ao mesmo tempo, deixou-me ainda mais pensativo e reflexivo, redobrando minha gana de lutar. Mesmo com vergonha de ser brasileiro, de volta estou à trincheira, com a mira recalibrada.
Há quem diga que o futuro a Deus pertence. Homem de fé, creio nisso. De igual modo tenho como mantra as palavras do escritor e artista plástico português José Sobral de Almada Negreiros: “Até hoje fui sempre futuro”. E assim continuarei sendo – futuro, sempre. Vivo um dia de cada vez, mas só sei ser amanhã.
Se o destino decidiu que não era chagada a minha hora, lembro aos desafetos que estou pronto para morrer pela democracia. Que venham!
(*) Ucho Haddad é jornalista político e investigativo, analista e comentarista político, escritor, poeta, palestrante e fotógrafo por devoção.
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