(*) Ucho Haddad
Lamento a morte de “Dona Olinda”, mãe do presidente da República, mas quando estreamos na vida a única certeza é que a qualquer momento ela, a morte, há de bater à nossa porta. Não temos escapatória. Por sorte, ninguém é eterno – refiro-me à vida terrena – nem fica para semente. Afinal, reeditar alguns políticos seria fincar o inferno no cotidiano.
Assim como todo ser humano, o presidente deve ter algumas parcas doses de talento. E vitimização é a primeira delas. Não há um só momento que escape desse cenário oportunista e nauseante que marca a trajetória de Jair Bolsonaro, a quem desde já peço licença para dispensar a formalidade.
Bolsonaro come camarões sem mastigar adequadamente – palavras do seu médico – e é levado às pressas para um dos mais caros e concorridos hospitais do País, onde o enredo do coitadismo falou mais alto. Em suma, mais uma vez politizou-se o “nó na tripa”, exaltou-se a facada.
No contraponto, avançando no terreno da dura realidade nacional, o brasileiro rói osso encontrado no lixo, mas em caso de desconforto abdominal precisa enfrentar a fila do posto de saúde mais próximo. Sem direito a reclamações e espetáculos toscos de vitimização.
No velório da mãe, Jair Bolsonaro resolveu discursar. Não poderia ser diferente, até porque trata-se de um governante que diuturnamente é devorado pela impopularidade. E perder uma chance dessa seria suicídio político.
“A partida da minha mãe faz parte do ciclo natural da vida, mas, mesmo assim, é difícil entender a morte. E, nesse momento, só peço ao nosso Deus todo misericordioso que conceda à minha mãe a vida eterna”, disse o oportunista.
Não causa estranheza o fato de alguém que não compreende a vida ter dificuldade para “entender a morte”. Esperar que Bolsonaro compreenda a morte é passar atestado de burrice. O presidente frequenta cultos evangélicos, fecha os olhos durante as pregações, como se estivesse conectado com o Criador, mas não consegue compreender a morte? Resumindo, ir ao templo do pastor camarada é pura encenação com fins eleitoreiros.
Em 29 de março de 2020, quando o Brasil registrava 4.256 casos de Covid-19 e 136 mortes pela doença, Bolsonaro, durante passeio em Brasília, ignorou a dor das famílias que perderam seus entes queridos, que hoje passam de 620 mil.
“Essa é uma realidade, o vírus tá aí. Vamos ter que enfrentá-lo, mas enfrentar como homem, porra, não como um moleque. Vamos enfrentar o vírus com a realidade. É a vida. Todos nós iremos morrer um dia”, disse o presidente.
Em 28 de abril daquele ano, quando o País acumulava 71.886 casos e 5.017 mortes causadas pelo novo coronavírus, Bolsonaro acionou a alavanca do vitupério e disse lamentar a perda de vidas. “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre”, declarou após ser questionado por jornalistas sobre a crise sanitária no Brasil.
Em setembro de 2021, durante entrevista a representantes da extrema direita alemã, Bolsonaro de novo invadiu o campo da boçalidade e afirmou que a Covid-19 antecipa em alguns dias a morte dos infectados pelo coronavírus. “Muitas [vítimas] tinham alguma comorbidade, então a Covid apenas encurtou a vida delas por alguns dias ou algumas semanas”, declarou.
Volto na linha do tempo para destacar o desapreço que o atual presidente tem pela vida alheia. Em 1999, em entrevista a um programa de televisão, o então deputado, quando perguntado sobre o voto no Brasil, disse que eleição não muda a realidade do País.
“Só vai mudar infelizmente quando partirmos para uma guerra civil, fazendo um trabalho que o regime militar não fez. Matando uns 30 mil, começando com FHC, não vamos deixar ele pra fora, não”, afirmou.
Bolsonaro, não sei qual é a sua relação com Deus, mas com certeza é diametralmente oposta à minha. Talvez o seu Deus seja outro, que não o meu. Mesmo assim, consigo compreender a morte e de fato aceito como uma sequência natural da vida.
Há quase 40 anos, fui surpreendido com a notícia da morte do meu saudoso pai, vítima de acidente aéreo. Havia chegado a sua hora, era o fim de um ciclo. Às vezes pego-me pensando como ele reagiria, se vivo estivesse, diante dos seus seguidos absurdos, Bolsonaro. Dono de raciocínio e pensamento privilegiadíssimos, meu pai era crítico ácido e coerente do Estado. Como dizem que o fruto não cai longe da árvore, talvez tenha herdado ao menos a verve crítica do velho João.
Dou-lhe o direito de alegar que mãe, como cocada no tabuleiro da baiana ao final do dia, só tem uma, mas soube lidar bem com a morte da minha. Aliás, das minhas, pois tive o privilégio de ter duas mães, uma de fato e de direito e outra de coração e alma. Ambas queridíssimas, sempre presentes na minha vida e que fazem uma tremenda falta. São eternas em outra dimensão.
Quando vi a boa e velha Zuza – a que me trouxe ao mundo – lutando contra a morte em um leito do hospital, pedi ao meu Deus, não ao seu, para que a levasse o quanto antes. Mesmo sabendo que a lei brasileira não permite, cheguei a perguntar aos médicos se era possível abreviar aquele sofrimento. Minha postura é sinal de que compreendo a morte, assim como repudio as 30 mil sugeridas em sua fala torpe.
Diferentemente da sua persistente postura, que é do tipo dupla face, não desejo mal ao próximo, nem mesmo ao mais figadal dos inimigos. Pelo contrário, se puder estender a mão a eles, estou sempre pronto. Desdenhar 620 mil mortes causadas pelo novo coronavírus é prova maior de alguém que ousa citar o nome de Deus em vão, mas que a Ele apela quando morre a própria mãe. E ainda clama por misericórdia.
Deixe essa dualidade comportamental pra lá, não queira ser, como cantou a divina Rita Lee, “mais macho que muito homem”. Procure ser 10% do cristão que encena diante de câmeras e microfones. Honre parte do slogan da sua campanha, “Deus acima de todos”. Se acima de todos nós Ele está, compreender a morte é mais do que necessário.
Bolsonaro, diz a sabedoria popular que “pimenta nos olhos dos outros é refresco”, mas enfrente a morte dos seus como “homem, porra, não como um moleque”. Enfrente a morte da mesma maneira como fizeram 620 mil famílias Brasil afora, as quais mereceram a zombaria de um genocida. E que o meu Deus, não o seu, recepcione Dona Olinda com as devidas honras.
(*) Ucho Haddad é jornalista político e investigativo, analista e comentarista político, escritor, poeta, palestrante e fotógrafo por devoção.
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