Escândalo dos cachês milionários pagos com dinheiro público leva o universo sertanejo à “sofrência”

 
A cantora Marília Mendonça morreu em acidente aéreo na zona rural de Piedade de Caratinga, Minas Gerais, em novembro de 2021, mas até então emprestava sua grave e potente voz para levar aos fãs a “sofrência” que marca muitas das músicas do universo sertanejo.

Ao contrário do que Marília cantava, o mundo da música sertaneja está a enfrentar uma “sofrência” que passa obrigatoriamente pela ganância de alguns artistas e pelo pouco cuidado com a coisa pública. Isso porque o noticiário tem revelado cada vez mais casos de uso do dinheiro público para custear cachês milionários de cantores.

Os sertanejos da atualidade jamais poderiam imaginar que uma crítica descabida de Zé Neto, que faz dupla com Cristiano, a uma tatuagem na catacumba do “derrière” da cantora Anitta pudesse causar tanto estrago. Zé Neto, que se diz conservador, ataca de forma corriqueira os artistas que recorrem à Lei Rouanet e afirma que os shows da dupla são pagos pelo povo.

“Estamos aqui em Sorriso, Mato Grosso, um dos estados que sustentou o Brasil durante a pandemia. Não somos artistas que dependemos de Lei Rouanet. Nosso cachê quem paga é o povo. A gente não precisa fazer tatuagem no ‘toba’ para mostrar se a gente está bem ou mal. A gente simplesmente vem aqui e canta, e o Brasil inteiro canta com a gente”, disse Zé Neto, durante show na cidade do interior mato-grossense.

É preciso dar razão a Zé Neto, pois os recursos utilizados por muitas prefeituras para bancar apresentações de sertanejos é dinheiro público, . Caso o cantor não tivesse dado eco ao discurso tacanho e preconceituoso do presidente Jair Bolsonaro, talvez o dinheiro fácil continuaria a pingar aos bolhões nos bolsos dos sertanejos.

Como afirmamos em matéria anterior, o uso de dinheiro público para custear apresentações de cantores sertanejos deveria ser investigado muito além da polêmica, com a qual Anitta soube lidar com a necessária frieza.

Os efeitos colaterais do imbróglio acabaram abrindo a “caixa de Pandora” e alcançando o cantor Gusttavo Lima, que teve cancelado um show contratado por R$ 1,2 milhão pela Prefeitura de Conceição do Mato Dentro (MG), que pretendia usar recursos de Compensação Financeira pela Exploração Mineral (CFEM), que só podem ser empregados em saúde, educação e infraestrutura.

Ocupando o terceiro lugar no ranking da CFEM, o município de Conceição do Mato Dentro recebeu R$ 387 milhões a título de contrapartida em 2021. Localizada a 160km da capital mineira, a cidade tem 17.908 habitantes, sendo que 12.373 estão inscritos no Cadastro Único (CadÚnico), que reúne dados sobre famílias brasileiras de baixa renda. Do total dos inscritos no CadÚnico, 6.868 estão em situação de extrema pobreza, com renda de até R$ 100 por mês, e aproximadamente 1.300 estão em situação de pobreza, com renda mensal de R$200.

 
O prefeito Conceição do Mato Dentro, José Fernando Aparecido de Oliveira (MDB), afirmou em vídeo publicado nas redes sociais que a polêmica é fruto de “guerra política e partidária”. O prefeito confirmou na publicação que estão canceladas as apresentações de Gusttavo Lima e da dupla Bruno e Marrone.

Gusttavo Lima, por sua vez, como forma de baixar a fervura, afirmou: “Não compactuo com uso de dinheiro público, tenho meus impostos em dia”. O cantor disse também que não cabe a ele fiscalizar a origem dos recursos usados por prefeituras na contratação de shows.

Quem não compactua com o uso do dinheiro público não deveria aceitar ser contratado por prefeituras à sombra de cachês milionários. Bastaria se negar qualquer relação com órgão públicos, optar por realizar shows sem a interferência do Estado ou recorrer à Lei Rouanet, que exige do artista a apresentação de projeto detalhado, o cumprimento de várias etapas e a prestação de contas.

A questão é simples e de fácil solução. Gusttavo Lima e outros sertanejos deveriam seguir o UCHO.INFO, que não aceita dinheiro público, por meio de campanhas publicitárias ou financiamento escuso – a exemplo do que acontece com os influenciadores bolsonaristas –, assim como não faz jornalismo de encomenda. É grande e árduo malabarismo para manter a página no ar e sobreviver, mas a consciência tranquila não tem preço. Além disso, somos livres para direcionar críticas responsáveis, mesmo que contundentes, a todos os políticos.

Isso posto, voltando à confusão, o destempero de Zé Neto, que disse “tenho defeito quando bebo”, acabou alvejando uma série de artistas. O Ministério Público de Goiás decidiu investigar, além da Prefeitura de Sorriso, os seguintes municípios que teriam usado recursos públicos na contratação de shows: Gaúcha do Norte, Porto Alegre do Norte, Figueirópolis D’Oeste, Nortelândia, Salto do Céu, Alto Taquari, Novo São Joaquim, Nova Mutum, Sapezal, Canarana, Acorizal, Brasnorte, Água Boa, São José do Xingu, Vera, Barra do Garças, Juína, Querência, Bom Jesus do Araguaia, Santa Carmem, Matupá, Nova Canaã do Norte e Novo Horizonte do Norte.

Depois de escândalos em Roraima e Minas Gerais, show de Gusttavo Lima, no valor de R$ 1 milhão, contratado pela Prefeitura de Magé, entrou na mira da Promotoria do Rio de Janeiro. O Ministério Público do Rio Grande do Norte acionou a Justiça, por meio de ação civil pública, para suspender shows dos cantores Wesley Safadão e Xand Avião no festival Mossoró Cidade Junina, previstos para acontecer neste mês na cidade potiguar.

Resumindo, o estrago provocado pela sabujice de Zé Neto saiu do controle e atingiu muitos artistas. Resumindo, o leite derramou e de nada adianta chorar a essa altura. Que quiser ir a shows que coloque a mão no bolso.