(*) Ucho Haddad
Quatro anos e alguns meses depois retorno à seara futebolística para afirmar publicamente o que muitos já sabem, mas alguns desconhecem: torço contra a seleção brasileira. Há 40 anos ou mais essa é a minha postura diante de uma farsa que de maneira equivocada é interpretada como símbolo de patriotismo.
Diferentemente dos que colocam a mão espalmada sobre o peito e choram ao cantar o Hino Nacional quando a seleção entra em campo – agora os golpistas também fazem o mesmo –, sou patriota o tempo todo, não de quatro em quatro anos. Não fosse verdade, jamais teria escolhido o jornalismo independente e de qualidade, baseado na verdade dos fatos, como caminho profissional. Jamais teria enfrentado ameaças e desafiado o perigo para noticiar os que muitos querem que ninguém saiba.
Sou do tipo de coerente chato, que não aceita negociação ou acordo. Coerência é algo que não se negocia – ou você tem ou nada feito. Muitos profissionais de imprensa que conheço torcem contra a seleção brasileira de futebol, mas por questões profissionais, até mesmo contratuais, dizem o contrário perante o público. Comigo o assunto é escancarado.
Até aqui a caminhada foi longa, sinuosa e árdua. Não será agora que me renderei ao binômio “pão e circo”. Há quem aceita ser enganado o tempo todo, mas prefiro ser criticado e manter a coerência do que recorrer ao bom-mocismo de ocasião. Como responsável pelo UCHO.INFO não deixarei de publicar notícias sobre a Copa do Qatar, mas como jornalista mantenho-me firme como alguém que torce contra a seleção.
Quem conhece os bastidores do futebol sabe o quanto o incauto torcedor é enganado. O jogo é sujo e rasteiro, além de previamente combinado. Há muito o futebol ingressou na seara do negócio – bilionário, diga-se de passagem –, por isso é preciso manter-se atento diuturnamente diante das negociatas de bastidores.
O Brasil vive a mais grave crise econômica e social, com dezenas de milhões de pessoas passando fome e revirando caminhões de lixo em busca de ossos e restos de comida, mas os jogadores da seleção brasileira, absolutamente insensíveis, fazem questão de ostentar nas redes sociais. A guerra de mochilas de grife que marcou o embarque da seleção em Turim, na Itália, e o desembarque no Qatar foi nauseante.
Alguém há de dizer que os jogadores estão amarrados a milionários contratos comerciais com grandes marcas e grifes, mas bom-senso em alguns momentos da vida é mais do que necessário. Também hão de dizer que os tais jogadores ajudam muitas pessoas, seja por meio de fundações, seja de forma direta, mas é preciso dar o exemplo. Não é porque alguns bons tostões são destinados a uns e outros que dar o exemplo não seja necessário. Aliás, alguns dos ditos caridosos agem de olho na possibilidade de descontar o valor destinado à benemerência na declaração do famigerado imposto de renda.
Além disso, alguns jogadores que investem em projetos sociais fazem chegar tal fato aos meios de comunicação, como estratégia de melhorar a imagem perante a opinião pública. Quem ajuda e aproveita o ajutório para se promover não vale o ar que respira.
Em relação ao Qatar, mais uma vez lembro que abomino ditadores, sejam eles reis, príncipes, militares, emires, xeiques e o escambau, de direita ou de esquerda. Ditador é ditador e ponto final. Tomando por base que milhares de trabalhadores morreram no Qatar durante a construção das arenas que receberão jogos da Copa do Mundo, tenho mais um motivo para torcer contra tudo e todos os envolvidos na competição. Ultrapassa as fronteiras da ilógica endossar um evento como o que acontece no Qatar, onde os direitos humanos são, de maneira constante, criminosamente ignorados.
Fosse jogador de futebol e convocado para integrar a seleção, de cara rejeitaria o chamado. É inimaginável alguém aceitar competir em um país que escancaradamente desrespeita dos direitos humanos, em nome de uma crença cultua a intolerância, repudia a diversidade, pune criminalmente os homossexuais, trata as mulheres como seres de segunda classe e contrata miseráveis estrangeiros para construir obras faraônicas ao longo de extenuantes jornadas de até 16 horas diárias de trabalho.
Respeito e admiro Adenor Leonardo Bachi, o Tite, mas a seleção brasileira é um “faz de conta” que causa engulhos. Não sou especialista em futebol, apesar de gostar do esporte como espectador e conhecer o suficiente para escrever crônicas – o que não faço há muito –, porém discordo de muitas decisões tomadas pela CBF. A convocação do lateral Daniel Alves – dizem que agora ele é um meia-armador ou coisa que o valha – só tem uma explicação: será babá de luxo do mimado Neymar.
Ninguém – reforço, ninguém – na seleção brasileira tem coragem em dose suficiente para repreender Neymar, principalmente quando ele tem um ataque de estrelismo que não cabe nem mesmo no planetário da esquina mais próxima. Na Copa da Rússia, por exemplo, a comissão técnica da seleção sequer ousou repreender o atacante, que, vale lembrar, não aceita ser contrariado. Dizem as fontes mais próximas da CBF que Neymar só abaixa a orelha – apenas uma, não as duas – quando aconselhado por Daniel Alves.
Em 2010, quando decidiu deixar Neymar no banco de reservas do Santos FC, em partida contra o Corinthians, o então treinador santista Dorival Júnior – hoje no comando do rubro-negro carioca – disse na ocasião que era preciso recuperar o jogador e que a decisão seria importante para o seu futuro. De olho no dinheiro que Neymar poderia reder aos cofres do clube, a diretoria do alvinegro praiano preferiu demitir Dorival. O treinador estava certo!
Outro ponto questionável na órbita da seleção brasileira é a hospedagem do grupo no Qatar. Jogadores e comissão técnica estão nababescamente alojados em hotel de luxo, com direito a praia artificial e diárias de R$ 14 mil. Em cada quarto foi colocada uma foto do jogador na infância. Fosse o “manda-chuva” da CBF, colocaria em cada quarto fotos dos brasileiros que reviram o lixo para matar a fome. Afinal, muitos dos brasileiros que estão no Qatar, jogando ou não, apoiaram e ainda apoiam os responsáveis pela tragédia econômica que assola o País.
Os jogadores estão em área separada do hotel, mas o complexo hoteleiro também abriga hóspedes comuns – não tão comuns diante de diária tão cara – e familiares dos atletas. Além disso, a CBF contratou as esposas de alguns jogadores, que atuam como influenciadoras digitais, para publicarem nas redes sociais notícias e informações dos bastidores da seleção, com a justificativa de deixar a equipe mais próxima do torcedor brasileiro. Como dizem por aí, “fuleragem” elevada à enésima potência.
Volto a Neymar, por quem não tenho o menor apreço, pelo contrário. O atacante do Paris Saint-Germain, por ocasião de sua milionária contratação, sabia que o dinheiro que proporcionou sua saída do FC Barcelona advinha de uma ditadura embalada por contos da mil e uma noites, que ainda encantam os desavisados. Além disso, o jogador do PSG sabia que, sob o manto de acordos financeiros vultosos, sua imagem seria explorada ao máximo no Qatar, como acontece em muitos locais e na parte externa de edifícios do emirado, que exibem imagens enormes de Neymar. Por maior que fosse a oferta, jamais aceitaria uma proposta de natureza tão torpe.
Por certo surgirão em cena os maledicentes profissionais para afirmar que todo ser humano tem um preço. Creio que muitos têm um preço, mas generalizar, pasteurizar essa teoria do absurdo é demais. Não me vendo – como jamais me vendi – por dinheiro algum. Ao longo da carreira, muitas foram as ofertas espúrias. A essa altura da vida poderia estar desfrutando de aposentadoria confortável, com considerável sobra de recursos, mas prefiro me equilibrar entre contas, boletos, faturas e outros instrumentos financeiros que tiram o sono. Tivesse me rendido às ofertas canhestras, não conseguiria me olhar no espelho.
A minha camisa tem a cor da coerência, tem o escudo da preocupação com o próximo e os desvalidos. Por isso e muito mais é que torço contra a seleção brasileira. E daí? Algum problema?
(*) Ucho Haddad é jornalista político e investigativo, analista e comentarista político, escritor, poeta, palestrante e fotógrafo por devoção.
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