Morremos aos poucos, a cada vez que damos adeus aos amigos que guardamos no lado esquerdo do peito

(*) Ucho Haddad

Venho pensando com certa insistência que a gente morre quando os amigos saem de cena, seja por omissão ou falta de compromisso com a amizade, seja por vontade divina. Pensamento que vem, fica martelando por um tempo e desaparece, mas volta toda vez que um amigo se despede da vida, sempre atribulada, incompreensível, cheia de surpresas.

Perdi alguns amigos caros, queridíssimos, daqueles que realmente fazem falta. Com certeza sempre farão falta. O ano de 2022 foi cruel em muitos sentidos, impiedoso, amargo… Por sorte está a um passo do fim. Sou daqueles que vivem um dia de cada vez, sempre acreditando num amanhã melhor. Porém, alguns “amanhãs” são e foram cruéis.

Tudo na vida tem uma razão de ser, algumas passagens são inexplicáveis. Somos finitos, é fato, contudo abomino quando alguém diz que chegou a hora de um e outro. Alguns amigos são tão especiais que, penso eu, Deus deveria parar o relógio celestial para que a tal hora jamais chegasse. De duas uma: ou Ele não dá ouvidos à minha prece ou já não sei mais orar.

Por diversas vezes, ao longo do ano que chega ao seu final, quase escrevi, o que ora faço, sobre essas despedidas repentinas, sem aviso prévio, talvez covardes. Em todas as ocasiões desisti acreditando que essa fase haveria de passar, que a partida de amigos cessaria em algum momento. A vida me enganou. Eles continuaram partindo.

Dida Sampaio e Orlando Brito, dois monstros do fotojornalismo, partiram de forma abrupta, sem avisar. Talvez tenham avisado e não percebi. Com Dida conversei pela última vez em 9 de fevereiro, dias antes de sua internação, da qual não mais voltou. Falamos sobre vários assuntos, inclusive melancia, e antes de terminarmos a chamada ele disse: “quando se planta no azul tudo dá certo”. Confesso que não compreendi a sua fala, mas não tive coragem de questionar o significado. Ele talvez estivesse se despedindo. Dida, esteja onde estiver, me desculpe.

Um dia antes, em 8 de fevereiro, repetindo o que fazia todos os anos, telefonei para cumprimentar Orlando Brito pelo aniversário. Como não respondeu à minha chamada, imaginei que estivesse em alguma missão fotográfica. Logo depois, Orlando enviou uma mensagem de áudio dizendo que estava saindo da sala de cirurgia, indo para a UTI, e que estava bem. Orlando, assim como Dida, não voltou, partiu.

Orlando Brito foi e sempre será responsável pelo meu retorno à profissão de origem: a fotografia. Ele insistiu de tal maneira, que me obrigou (sic) a comprar uma câmera nova e das boas. Cumpri a ordem do mestre e comprei a câmera que ele indicou e chamou para si a primeira configuração – nada mais justo. Em minhas andanças pelo Congresso Nacional perdi o parasol da câmera. Retornei para São Paulo inconformado. No dia seguinte ele me telefonou para dizer que encontrou o parasol e que só poderia ser meu. Agradeci-o pelo gesto – não poderia ser diferente vindo de alguém como Orlando.

Toda vez que tomo a câmera nas mãos é impossível não lembrar de Orlando Brito. Dida Sampaio, um queridíssimo, por sua vez, sempre me incentivou a retomar a fotografia. Extremamente generoso, disse em algumas ocasiões que eu fazia concorrência. Quem dera! Por sorte segui o conselho de ambos e retornei à fotografia. Ter dado ouvidos aos dois foi uma decisão acertada, pois feliz estou de volta às imagens. Tenho comigo o compromisso de me superar a cada dia por conta de tão notáveis incentivadores que me dedicaram honrosos “empurrões”.

Em agosto, dia 13, recebo a notícia de que o imprescindível Hélio Bastos, o Helito, havia nos deixado. Reconheço que foi melhor assim, já que Helito era sinônimo de alegria constante, de uma risada que mesclava ironia e requinte, sempre emoldurada por um bigode cuidadosamente aparado. Era esfuziante, não poderia sofrer. Parceiro de muitas empreitadas, falávamos sempre. Mesmo injuriado com algum assunto, tinha sempre um sorriso, uma gargalhada contagiante. Era tão querido, que minha filha perguntou a ele se poderia adotá-lo como avô. Diz até hoje que Helito era “fofinho”. Otimista por natureza e movido por generosidade impressionante, estava sempre pronto para estender a mão ao próximo. Era um misto de paizão com irmão mais velho. Na divisão da herança do “capitão Hélio” fiquei com a melhor parte: a amizade que me dedicam a filha e o genro. Sorte a minha!

Pensei em escrever sobre os amigos que partem sem prévia autorização. Desisti porque não estava pronto, porque a risada do Helito continua a ecoar na memória, porque os conselhos e impulsos de Dida e Orlando ainda fazem eco no pensamento.

Há dias, uma notícia me levou a retomar a ideia de escrever sobre a morte lenta, a conta-gotas, homeopática que acontece com a gente. Diz a sabedoria popular que para morrer basta estar vivo. É uma profecia óbvia e ao mesmo tempo lógica, já que começamos a morrer assim que nascemos. Pois bem, também despediu-se da vida o querido amigo José Roberto Faria Lima. Apesar de algumas discordâncias no campo político, sempre consultávamos um ao outro sobre temas afins.

Certa vez, há mais ou menos quinze anos, Faria Lima disse em depoimento a integrantes da minha equipe, sem que soubesse, quando de repente apareceu no meu escritório: “Quero destacar o espírito inovador, desbravador do Ucho, de utilizar essas mídias modernas que vieram para ficar. Por questões de instantes as coisas mudam. O fraco tem medo antes, o covarde tem medo durante, o forte sente medo depois. Eu não percebi no Ucho nenhum medo, porque para prestar serviços, valorizando essa mídia, ele tem uma coragem que merece o nosso agradecimento.” Que lisonja!

Há um ano, em 14 de dezembro de 2021, Faria Lima me convidou para o lançamento virtual de “Lampejos”, seu livro sobre reflexões a respeito da vida. Não pude acompanhar, infelizmente, porque me recuperava de grave infecção por Covid-19. Tempos depois, na Páscoa, enviou mensagem para informar que meu exemplar de “Lampejos” estava separado. Disse ele que estava há meses na cama e apostava na recuperação. Um mês antes, enviou o link de artigo cujo título é no mínimo intrigante: “Ninguém está imune à vida”.

Faria Lima tem razão, ninguém está imune à vida. Assim ele encerra o texto: “A loucura de um homem não é uma condenação divina. Pode ser um novo chamamento, mas a certeza de que o impossível é uma miragem. Os desígnios de Deus são indecifráveis.”

No sábado, 17 de dezembro, deixou um punhado de “órfãos” o grande jornalista Carlos Brickmann, o Carlinhos. O ano era 2001, não me recordo o mês, quando recebi uma chamada no celular. Era Marli Gonçalves, fiel escudeira de Carlinhos e que se tornou amiga com todas as letras. Estava a pé, a caminho de casa, quando ouvi uma voz dizendo que Carlinhos queria me conhecer. Desviei o caminho e a pé fui ao escritório de Brickmann. Café, muita conversa, horas de boa conversa. Aquele encontro foi o primeiro passo de uma inestimável amizade, que da minha parte tinha a admiração como importante acessório.

Certa vez, quando covardes se incomodaram com o meu jornalismo, Carlinhos colocou a tiracolo o seu prestígio como jornalista e saiu em minha defesa. Disse naquele momento que se me atacavam é porque eu incomodava, estava vivo e que ninguém chuta cachorro morto. Tempos depois me deu duas missões jornalísticas quase impossíveis. Aceitei-as de bate pronto, ciente de que não poderia decepcionar alguém do tamanho (nos mais variados sentidos) do Carlinhos. Por sorte dei conta do recado.

Em Brasília, no burburinho da política, acompanhei com Carlinhos e Marli algumas CPIs. Com essa dupla aprendi os detalhes do gerenciamento de crise – aula magna com dois bambas no assunto.

Dono de memória invejável, senhor de texto tão brilhante quanto picante, Carlos Brickmann carregava um humor refinado que inquietava muita gente. Era perspicaz e como poucos sabia fustigar os políticos, em especial os trapalhões. Sua coluna, publicada duas vezes por semana, era imperdível, como sempre afirmei. Carlinhos foi o mestre de muitos.

Em 17 de julho passado, quando o UCHO.INFO completou 21 anos, Carlinhos publicou nas nossas redes sociais mensagem muito mais que elogiosa. “Ucho, cá entre nós: você conquistou uma posição importante na imprensa e não precisou puxar o saco de ninguém.” Exagerou na generosidade, comportamento típico dele.

Escrevi para agradecer o elogio e a réplica veio recheada com seu conhecido bom humor: “Shalom, Ucho!!! Como é que você está? Casado, solteiro, mudou de lado… Conte-me tudo!”. Assim era o Carlinhos, o “amado mestre”, corinthiano roxo como eu. Continuamos a conversa, mas percebi que sua pilha estava perdendo a carga. Apesar de tudo, tinha muitos planos.

No domingo conversei com Berta, mulher do Carlinhos, a quem ela chamava de Caco. Disse ela: “Não tenho mais força. Ele não poderia ter ido antes de mim”. Concordo com a Berta, amigos que guardamos no lado esquerdo do peito são imortais e não deveriam partir antes da gente, principalmente sem pedir autorização.

Em “Canção da América”, Milton Nascimento e Fernando Brant destacam de forma clara e magistral: “Seja o que vier, venha o que vier. Qualquer dia, amigo, eu volto a te encontrar. Qualquer dia, amigo, a gente vai se encontrar”.

Não tenho dificuldade para lidar com a morte, mas essa coisa de a cada momento perder um pedaço da minha história não está certo, não concordo. Disse Woody Allen: “Não é que eu tenha medo de morrer. É que eu não quero estar lá na hora que isso acontecer.” Os queridíssimos aqui citados foram tão importantes como amigos que não consigo apagar o número do telefone de cada um do meu celular. Aguardem-me!

(*) Ucho Haddad é jornalista político e investigativo, analista e comentarista político, fotógrafo por devoção.

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