O dia em que Pelé me salvou

(*) Ucho Haddad

O maior de todos, sempre será. Pelé, verdadeira instituição, ultrapassou as quatro linhas dos gramados que serviram de palco para sua invejável intimidade com a bola. Quem gosta e entende minimamente de futebol sabe que Pelé é incomparável, por mais que as mágicas do marketing tenham fincado algumas falsas estrelas no planetário futebolístico.

As gerações mais recentes ousam idolatrar alguns jogadores como se fenomenais fossem, quando na verdade os tais ídolos são apenas e tão somente acima da média. É fato que há raríssimas exceções, mas nem longe fazem sombra à incontestável genialidade de Pelé. Não viram o Rei em ação.

Tive a sorte de ver Pelé jogar inúmeras vezes, inclusive contra o Corinthians, meu clube do coração. Era impossível não se render à forma como o Rei do Futebol lidava com a bola. Até mesmo quando ele marcava gols contra o Timão.

Em diversas ocasiões fui ao Estádio Paulo Machado de Carvalho, o Pacaembu, em São Paulo, apenas para ver Pelé. Não importava contra quem fosse, mas lá estava. Foi mágico com a bola nos pés, senhor da arte do impossível.

Estreei nos estádios de futebol muito cedo, em 1965, aos 7 anos. Essa precocidade permitiu acompanhar o gênio da bola que agora deixa órfãos os amantes do futebol. Em 19 de novembro de 1969, ansioso estava diante da televisão (em branco e preto) para ver Pelé marcar o milésimo gol, no Maracanã. Combinei antecipadamente com os meus pais que só dormiria depois do gol de número 1.000. Naquele tempo as crianças iam cedo para a cama.

Um ano depois, em 1970, na Copa do Mundo do México, quando o Brasil foi tricampeão e conquistou em caráter definitivo a taça Jules Rimet – roubada anos depois em episódio picaresco –, consegui compreender a grandeza de Pelé. Vivíamos os primórdios da ditadura militar. O Rei e seus companheiros do tri conseguiram dar alegria a um povo que enfrentava a truculência e os desvarios dos militares.

No início da década de 80, quando me mudei para a Europa na condição de correspondente internacional, pude constatar o reconhecimento de Pelé mundo afora. Naquele tempo, do qual tenho excepcionais recordações, o serviço diplomático pouco importava aos brasileiros que estavam longe de casa. As agências e escritórios da saudosa Varig eram consulados informais. Tudo acontecia na Varig ou a partir da companhia aérea. Porém, um personagem muito maior funcionava como abre-alas por toda parte: Pelé, o Rei do Futebol.

Pelé sempre foi a chave mágica que abria portas intransponíveis. Era impossível não se curvar ao Rei, ao seu legado. Certa feita, chegando na Alemanha, retornando de missão jornalística no Leste europeu, fui detido pela polícia de imigração.

Os policiais alemães desconfiaram do sobrenome árabe e quiseram saber o que estava a fazer por lá. De nada adiantou dizer que era jornalista e brasileiro, como mostrava a credencial e o passaporte, na época não tão confiável. Viraram e reviraram as bagagens, os equipamentos de trabalho, até os saltos dos sapatos foram checados de forma minuciosa. Eis que fui salvo por Pelé. Uma camisa da seleção com o número 10 às costas, em uma das malas, foi a carta de alforria.

Anos mais tarde, tive a sorte e o prazer de conhecer o maior atleta de todos os tempos. Encontramo-nos outras poucas vezes, sempre respeitando sua privacidade, mesmo sabendo que era acessível.

No campo da política, Pelé foi corajoso. Mandou recados aos facinorosos militares que aterrorizaram o Brasil, sem temer qualquer reação. Ele já era majestade. Logo após o milésimo gol, o Rei pediu aos governantes que se preocupassem com as crianças e com o estado de miséria da população. Por essa atitude foi criticado, debochado. Seus detratores deveriam se desculpar com quem foi profético, já que a atualidade fala por si.

Tão genial e grande, o Rei virou adjetivo. Quantos não desejaram e desejam ser um Pelé nessa ou naquela profissão, nesse ou naquele esporte?

Pelé, muito obrigado pelas alegrias, pelos dribles desconcertantes, pelas jogadas cinematográficas, pelos gols magistrais (inclusive contra o Corinthians), pelo Tri. Obrigado por tudo, principalmente por ter me livrado de situação tão difícil. Kaiser, siga em paz e marque muitos gols no céu, balance as redes do Senhor. Sem você o futebol perdeu a graça, nunca mais será o mesmo.

(*) Ucho Haddad é jornalista político e investigativo, analista e comentarista político, fotógrafo por devoção.

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