Ofensa racista a Vinícius Júnior é criminosa e inaceitável, mas aqui, como na Espanha, o racismo corre solto

(*) Ucho Haddad

A ofensa racista de que foi vítima o jogador Vinícius Júnior, do Real Madrid, ganhou repercussão internacional e produziu um incidente diplomático entre os governos brasileiro e espanhol. Não é a primeira vez que Vini, um dos maiores e melhores jogadores de futebol da atualidade, é alvo do preconceito e da intolerância dos torcedores espanhóis. O crime de racismo foi cometido por torcedores do Valencia, que chamaram o jogador de “macaco”.

O governo brasileiro anunciou que cobrará explicações da embaixadora da Espanha em Brasília, mas sabe-se que assuntos espinhosos tratados com diplomacia resultam em nada. Tudo fica na seara do protocolo, sem que uma solução de fato seja apresentada.

As ofensas contra Vinícius Júnior acontecem há algum tempo, sem que as autoridades espanholas tenham agido com a necessária firmeza para punir os criminosos. Falo em crime porque assim esse comportamento é enquadrado no Brasil. Se na Espanha o racismo é tolerado, como de fato é, o caso deve ser avaliado por órgãos internacionais de direitos humanos.

Quem conhece a Espanha sabe que o chamado eurocentrismo é bastante forte por lá. O eurocentrismo é uma visão de mundo que tem a Europa como mola propulsora da humanidade, o epicentro dos acontecimentos globais e responsável pelas mudanças sociais. Na verdade, o eurocentrismo exalta de forma disfarçada a supremacia da raça branca, como se a cor da pele justificasse atitudes discriminatórias. Também considera que apenas os nascidos no Velho Continente são dotados de inteligência.

Esse conceito obtuso e criminoso prevaleceu durante muito tempo como argumento para os avanços dos europeus na era colonialista, vã tentativa de explicar a tomada de países inteiros, explorando riquezas naturais e a mão de obra local, em clara ação escravagista. Diante da impossibilidade de continuar explorando as colônias, escandalosamente usurpadas e saqueadas, muitos países europeus abandonaram o projeto imperialista, ignorando o ônus da investida.

O ataque racista contra Vinícius Júnior colocou luz sobre as dificuldades enfrentadas por brasileiros negros que se arriscam além de nossas fronteiras. Foi por causa da notoriedade de Vini que o governo brasileiro decidiu cobrar explicações das autoridades espanholas. Fosse o excepcional atacante do Real Madrid um reles desconhecido que se aventurou na Europa, o caso certamente não teria tanta visibilidade, talvez nenhuma.

Muito falou-se nas últimas horas sobre racismo estrutural, mas entendo que na realidade enfrentamos racismo sistêmico. A discriminação racial sistêmica é um processo deflagrado por uma sociedade – ou por determinado setor – que se aproveita do legado de desvantagem de pessoas com estigmas raciais para atacá-las. É importante lembrar que esse cenário de desvantagens foi produzido por aqueles que acionam a alavanca do racismo, sempre ancorado no eurocentrismo.

O presidente da Real Federação de Futebol Espanhol, Luís Rubiales, colocou-se à disposição das vítimas de racismo e disse que o país tem “problema de educação”. “Esse é um assunto que ganhou uma dimensão além do futebol e não é a primeira vez. Temos um problema em nosso país de educação, de racismo. Temos um problema sério que mancha todo um time, torcedores e um país inteiro”, afirmou Rubiales.

O problema não é de educação, mas de cometimento de crime, que, como mencionei acima, existe à sombra da tese torpe do eurocentrismo. Se eventualmente o problema está na baixa educação dos espanhóis, apenas a punição com rigor é capaz de conter e reverter um comportamento que, mesmo não sendo normal, tem se tornado comum.

Presidente da La Liga, responsável por organizar o Campeonato Espanhol, Javier Tebas não gostou da reação do jogador brasileiro e sugeriu que ele “se informe adequadamente” sobre as ações da entidade no combate ao racismo.

Apesar de ter garantido o direito à liberdade de expressão, Tebas é conhecido apoiador do Vox, partido político de extrema-direita espanhol, e ex-integrante do Fuerza Nova, agremiação partidária fascista que existiu na Espanha entre 1976 e 1982. O Vox é formado por apoiadores do ditador espanhol Francisco Franco (1892-1975). Esperar medidas de combate ao racismo de alguém com esse perfil é acreditar no impossível.

Em março de 2022, Javier Tebas esteve no Brasil para encontro com presidentes de clubes brasileiros de futebol. Na ocasião, ele apresentou aos cartolas um modelo de negócios para a criação da Liga de Clubes no Brasil. O encontro também contou com representantes da XP Investimentos e da Alvarez & Marsal, empresa que entre outros afazeres cuida da recuperação judicial do grupo Odebrecht e contou com os préstimos de ninguém menos que Sérgio Moro, o falso Don Quixote tupiniquim.

Voltando ao racismo… A reação dos brasileiros diante de mais um ataque racista contra Vinícius Júnior é protocolar, do tipo para “inglês ver”. No Brasil acontecem inúmeros casos de racismo diariamente, sem que a população reaja à altura. Tivesse o brasileiro doses rasas de vergonha e sangue nas veias, a embaixada da Espanha em Brasília teria amanhecido cercada por cidadãos indignados.

Isso não ocorreu porque o brasileiro é acomodado e aceita passivamente o discurso de ódio e a discriminação. Não custa recordar três casos recentes de intolerância explícita, mais precisamente de racismo e xenofobia.

Em novembro de 2022, Ângela Machado, mulher do presidente do Flamengo, Rodolfo Landim, usou sua conta no Instagram para ofender os nordestinos após a vitória de Lula na corrida presidencial. “Ganhamos onde produz, perdemos onde se passa férias. Bora (sic) trabalhar porque se o gado morre, o carrapato passa fome”, escreveu Ângela, que é diretora de responsabilidade social do rubro-negro carioca.

Depois desse insulto criminoso, os nordestinos deveriam boicotar as partidas do Flamengo, pelo menos nos estádios, que, ao contrário, estão sempre lotados, com presença maciça de nordestinos ou descendentes. Resumindo, brasileiro não tem vergonha na cara.

Outro caso foi o do vereador Sandro Fantinel (Patriota), de Caxias do Sul (RS), que usou a tribuna do Legislativo municipal para um ataque xenofóbico aos nordestinos. Em 28 de fevereiro passado, Fantinel decidiu comentar a polêmica envolvendo denúncias de trabalho escravo em fazendas de produtores de vinho do Rio Grande do Sul. Boa parte dos trabalhadores em regime análogo à escravidão era de baianos.

“Agricultores, produtores, empresas agrícolas que estão, neste momento, me acompanhando, eu vou dar um conselho para vocês: não contratem mais aquela gente lá de cima. Conversem comigo, vamos criar uma linha e vamos contratar os argentinos, porque todos os agricultores que têm argentinos trabalhando hoje só batem palmas”.

“[Os argentinos] São limpos, trabalhadores, corretos, cumprem o horário, mantêm a casa limpa e, no dia de ir embora, ainda agradecem o patrão pelo serviço prestado e pelo dinheiro recebido”, afirmou. O xenófobo foi além em seu criminoso discurso de ódio e afirmou que “os baianos são sujos e sabem apenas tocar tambor e dançar”.

O mínimo que a Câmara de Caxias do Sul poderia fazer é cassar o mandato de Fantinel, mas ele escapou ileso. Isso porque nove vereadores votaram contra a cassação, ou seja, são adeptos da xenofobia. Os brasileiros aceitaram a decisão, tomada pelos vereadores da cidade gaúcha no último dia 16 de maio, sem qualquer tipo de reação. Com essa passividade é possível normalizar aquilo que é comum.

Para se ter ideia de como o racismo caminha de forma deliberada e a passos largos no Brasil, Renato Freitas, deputado estadual no Paraná pelo Partido dos Trabalhadores, teve o mandato cassado enquanto vereador, em 2022, por quebra de decoro, segundo seus pares na Câmara Municipal de Curitiba. A cassação – por 25 votos a 5, em segundo turno – se deu porque Freitas participou de manifestação de “pretos, em uma igreja conhecida por ser a Igreja dos Pretos, construída por pessoas pretas escravizadas para que elas pudessem professar a sua fé”.

O ato, de acordo com Renato Freitas, foi organizado como protesto contra as mortes do congolês Moïse Mugenyi Kabagambe e de Durval Teófilo Filho, ambos assassinados no Rio de Janeiro no começo do ano passado. Ele recuperou o mandato de vereador, com decisão do ministro Luís Roberto Barroso (STF), e foi eleito deputado estadual.

Há dias, Renato Freitas foi novamente vítima de racismo, ao ser abordado pela Polícia Federal (PF) dentro de um avião pouco antes da decolagem no aeroporto de Foz do Iguaçu (PR). Ele estava na cidade a convite do Ministério dos Povos Indígenas e seguia para Londrina. Os policiais o retiraram da aeronave para revista, mesmo ele já tendo passado pela inspeção na máquina de raio-X. Fica provado que o racismo avança perigosamente no País, mas é preciso resistir e agir para mudar o jogo.

O ataque racista a Vinícius Júnior é inaceitável e deve ser punido de forma exemplar pelos espanhóis, mas é preciso reconhecer que o racismo corre solto no Brasil, sem que autoridades e sociedade reajam com firmeza, indignação e repúdio. Aproveitamos o episódio para relembrar frase do genial Mahatma Gandhi, que o UCHO.INFO postou recentemente nas redes sociais: “O mundo está farto de ódio”.

(*) Ucho Haddad é jornalista político e investigativo, analista e comentarista político, fotógrafo por devoção.

As informações e opiniões contidas no texto são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo obrigatoriamente o pensamento e a linha editorial deste site de notícias.


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