Para a Folha, o pau que bate no Chico de Gaza não bate no Francisco de Israel

(*) Ucho Haddad

Ao longo da caminhada como jornalista, fui questionado em diversas ocasiões por não ter buscado colocação em algum grande veículo de comunicação. Sabem os que acompanham o meu trabalho que não aceito ser tutelado. Sou ferrenho defensor do jornalismo independente, modalidade que fecha as portas a interesses escusos, ou seja, vai na contramão dos interesses financeiros das empresas de mídia. Não estou a afirmar que tais empresas fazem jornalismo de encomenda, mas, quando necessário, ao som do tilintar da caixa registradora, “passam pano” para proteger alguém – talvez para não prejudicar.

No universo da sabedoria popular há um ditado que adaptei à minha realidade profissional: “perco o amigo, mas não perco a notícia”. Isso já me custou caro, muito caro, mas faria tudo outra vez, fosse preciso. Prefiro ser livre em termos profissionais e estar com o bolso vazio a receber um salário supostamente polpudo como recompensa da venda da consciência ao diabo. Isso nunca fiz, jamais farei. Sem perder a coerência ou abandonar a responsabilidade, escrevo o que penso e assumo os riscos que surgem no vácuo das reações rasteiras dos incomodados.

No último sábado, 7 de outubro, decidi escrever sobre o surpreendente ataque do Hamas a Israel. Algumas pessoas disseram que a “pancadaria” seria grande, o que não aconteceu. Não temo os efeitos colaterais dos meus textos. Aliás, jornalismo que não incomoda é assessoria de imprensa. O genial e saudoso Millôr Fernandes disse certa vez: “Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados”.

Nesta segunda-feira (9), garimpando informações sobre o conflito no Oriente Médio, que pode se alastrar caso não haja disposição das partes para um acordo, deparei-me com uma notícia/informação publicada na página eletrônica da Folha de S.Paulo. O matutino paulistano informou que, com base no seu manual de redação, o Hamas será tratado nas matérias como grupo terrorista. Logo a Folha que sempre bateu no peito para reivindicar o status de “farol da democracia”.

Se um chefe de redação me obriga a escrever algo que atenta contra as minhas crenças, a coerência e o bom-senso, peço demissão, mando emprego e salário às favas. E ainda jogo no lixo o manual de redação. Prefiro perder o sono com contas atrasadas a não dormir por ter permitido o estupro da minha consciência.

Há exatos 36 anos, no final de 1987, com a assinatura da agência W/Brasil, a Folha lançou uma campanha publicitária impactante, na qual pontos na tela da TV formavam a imagem do nazista Adolph Hitler. A locução do premiado filme era enfática: “Este homem pegou uma nação destruída, recuperou sua economia e devolveu o orgulho a seu povo…”.

Na sequência, a locução em off encerrava a contundente peça publicitária: “É possível contar um monte de mentiras dizendo só a verdade. Por isso é preciso tomar muito cuidado com a informação no jornal que você recebe. Folha de S.Paulo, o jornal que mais se compra e o que nunca se vende”.

Com a devida licença do genial Washington Olivetto e seus parceiros de criação – e o respeito que merecem –, os leitores devem tomar muito cuidado com a informação contida na Folha que recebem. Nos dias de hoje, com o impressionante avanço da tecnologia, o jornal já não chega na porta de casa, em cima do capacho, mas na tela do celular. Mesmo assim, com jornal impresso ou digital é preciso ter cuidado redobrado.

Como escrevi no artigo publicado no último sábado, não estou a defender os integrantes do Hamas ou os israelenses, apenas cobro coerência de quem elabora notícias, pois informação que beneficia um lado e prejudica o outro não é jornalismo, é missa encomendada. Lembro mais uma vez que sou intransigentemente contra qualquer tipo de violência.

Lembro-me dos ataques desferidos por sindicalistas quando criticava de maneira incisiva o PT. Disseram na ocasião que eu deveria ser proibido de escrever por não ter cursado jornalismo, portanto desconhecia os mais básicos conceitos de sociologia e ética para ser jornalista. Nasci com vocação para escrever. Que culpa tenho? Ética aprendi desde o berço, na casa dos meus pais. Ataques semelhantes ocorreram quando denunciei o esquema de corrupção na Petrobras. Artilharia pesada (sic) e ameaças por toda parte.

O mesmo aconteceu desde a campanha presidencial de 2018 até o ano passado, período em que critiquei dura e implacavelmente Jair Bolsonaro. Seu “rebanho” foi à loucura, valendo-se de ofensas típicas de lupanar e de acusações criminosas. Escreveu o espetacular Mario Quintana no Poeminho do Contra: “Todos esses que aí estão atravancando meu caminho, eles passarão… Eu passarinho!”.

Voltando ao manual de redação da Folha… O jornal justificou a decisão da seguinte forma: “a palavra terrorista deve ser usada para qualificar quem pratica violência indiscriminada contra não combatentes a fim de disseminar pânico e intimidar adversários”.

Muitos países seguem a decisão da Organização das Nações Unidas (ONU) para classificar determinado grupo como terrorista. É o caso dos grupos Al-Qaeda, Estado Islâmico e Boko Haram. No contraponto, Estados Unidos, Reino Unido, Japão, Austrália e União Europeia tratam o Hamas como grupo terrorista.

Ao invés de tirar o seu manual de redação do armário para justificar um absurdo redacional, a Folha deveria comprar livros de História e distribuir aos jornalistas. As barbáries cometidas contra judeus pelo mesmo Hitler que a Folha usou em sua campanha publicitária de 87 serviram de base para a proposta do Reino Unido, encampada pela ONU, de dividir a Palestina entre judeus e palestinos.

A proposta foi apresentada em 1947. O Estado de Israel foi criado no ano seguinte, sem que os palestinos pudessem opinar a respeito do tema. Imposição pura e simples. Os judeus de hoje dizem que os palestinos de então não aceitaram a proposta. Ora, o sujeito tem a casa invadida e é obrigado a tratar o invasor com pompa e circunstância? Sou adepto do diálogo, da negociação. Caso a demarcação territorial de 1948 tivesse sido respeitada por Israel, não estaríamos assistindo a mais um capítulo de uma disputa sem fim.

A incoerência atual da Folha reverbera em campanhas publicitárias passadas. Na mesma toada de “Hitler”, de 1987, a Folha lançou, em 2020, a campanha “Amarelo/Democracia”. Sobre uma foto clássica da repressão militar em 1968, que aos poucos se revela, surge a locução: “Nós vimos – e nunca esqueceremos – os horrores da ditadura. E sempre defenderemos a democracia. Folha de S.Paulo. Use amarelo. Pela democracia”. A foto é do grande Evandro Teixeira, com quem tive a honra de trabalhar em determinado momento da carreira.

O que Israel fez ao longo dos últimos 75 anos, avançando de forma truculenta sobre o território palestino, em inequívoca e criminosa limpeza étnica com o apoio do Ocidente, nada mais é do que ditadura. Apesar dessa realidade, a Folha prefere tratar Israel com dengos e chamegos jornalísticos.

Antes que me acusem de estar mentindo, em 5 de abril passado, a mesma Folha, que ainda ousa se apresentar como lanterna da democracia, publicou matéria sobre a invasão à mesquita Al-Aqsa, em Jerusalém, por policiais israelenses. A ação da tropa de choque terminou com 350 pessoas detidas e 37 feridos.

No mesmo dia, de acordo com matéria da Folha, “uma multidão de muçulmanos se reuniu novamente dentro e no entorno da mesquita para a oração noturna do Ramadã. Segundo a polícia israelense, dezenas de insurgentes, alguns usando máscara, atiraram fogos de artifício e pedras dentro da mesquita”.

“As forças de segurança de Israel entraram durante a noite na mesquita, quebrando portas e janelas, quando os fiéis estavam no local para rezar, relatou Abdelkarim Ikraiem, um palestino de 74 anos que estava no templo”, noticiou o jornal.

Em nenhum trecho da matéria, veiculada em abril passado, a Folha usou o termo “grupo terrorista” para se referir à tropa de choque israelense. De acordo com o malfadado manual de redação, “a palavra terrorista deve ser usada para qualificar quem pratica violência indiscriminada contra não combatentes a fim de disseminar pânico e intimidar adversários”.

Se adentrar uma mesquita, destruindo portas e janelas, e agredir quem está orando não é terrorismo, que a Folha explique o que de fato é. Alguém deveria contar para o citado manual de redação a máxima “o pau que bate em Chico, bate em Francisco”. Será que Chico é palestino e Francisco é israelense?

Mais uma vez com a licença de Olivetto, parodiando a assinatura da campanha publicitária, é possível contar um monte de mentiras dizendo só meia verdade. A Folha, por certo, ainda é o jornal que mais se compra, mas no caso em questão se vendeu ao diabo. E cada um que construa a própria concepção de lúcifer.

(*) Ucho Haddad é jornalista político e investigativo, analista e comentarista político, fotógrafo por devoção.

As informações e opiniões contidas no texto são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo obrigatoriamente o pensamento e a linha editorial deste site de notícias.


Se você chegou até aqui é porque tem interesse em jornalismo profissional, responsável e independente. Assim é o jornalismo do UCHO.INFO, que nos últimos 20 anos teve participação importante em momentos decisivos do País. Não temos preferência política ou partidária, apenas um compromisso inviolável com a ética e a verdade dos fatos. Nossas análises políticas, que compõem as matérias jornalísticas, são balizadas e certeiras. Isso é fruto da experiência de décadas do nosso editor em jornalismo político e investigativo. Além disso, nosso time de articulistas é de primeiríssima qualidade. Para seguir adiante e continuar defendendo a democracia, os direitos do cidadão e ajudando o Brasil a mudar, o UCHO.INFO precisa da sua contribuição mensal. Desse modo conseguiremos manter a independência e melhorar cada vez mais a qualidade de um jornalismo que conquistou a confiança e o respeito de muitos. Clique e contribua agora através do PayPal. É rápido e seguro! Nós, do UCHO.INFO, agradecemos por seu apoio.