Confrontos entre Judiciário, políticos e investigados servem para nada; imprensa precisa rever seu papel

(*) Ucho Haddad

Sempre me posicionei contra o excesso de exposição de integrantes do Judiciário, a começar pelos membros das instâncias superiores. Entendo que juízes devem se manifestar apenas nos autos, evitando entrevistas e declarações, o que pode comprometer a tramitação de processos.

Não bastasse a recente crispação entre o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), e o empresário Elon Musk, dono da rede social X e da Tesla, arrefecida após desnecessária troca de mensagens, agora o Brasil se depara com nova guerra de narrativas, que, espero, esteja a caminho do epílogo.

Em 4 de abril, o senador e ex-juiz federal Sergio Moro (União Brasil-PR) reuniu-se com o ministro Gilmar Mendes, do STF. No encontro, o ministro afirmou que Moro e Deltan Dallagnol, então chefe da força-tarefa da Lava-Jato em Curitiba, “roubavam galinha juntos”. O senador também ouviu de Gilmar que ele poderia aprimorar sua formação jurídica. O magistrado sugeriu a biblioteca do Senado como fonte de consulta.

É preciso saber o que Gilmar Mendes entende por “roubar galinhas”, declaração inapropriada para um membro da mais alta Corte da Justiça brasileira. Quando viralizou nas redes sociais um vídeo em que Moro fala sobre “comprar um habeas corpus de Gilmar Mendes”, a Procuradoria Geral da República denunciou-o por calúnia. De acordo com a Constituição Federal, “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza” (artigo 5º, caput), ou seja, o que vale para Moro também vale para Gilmar.

Na última semana, em entrevista, Moro disse que o encontro foi “acalorado” e que as afirmações de Gilmar tiveram as devidas respostas. “Foi uma conversa, de fato, ‘acalorada’. Não vou entrar em detalhes pois foi uma conversa privada, mas nós conversamos e tudo que ele falou teve a sua resposta, na tentativa de abrirmos um espaço para diálogo”, declarou.

Na segunda-feira (15), também em entrevista, o ministro Gilmar Mendes disse que parte da mídia transformou o senador Sergio Moro em “Deus” e o ex-juiz federal “acreditou nesse personagem”.

“Tenho a impressão de que talvez Sergio Moro conhecesse pouco Brasília e talvez estivesse muito inflado – graças, inclusive, a vocês. Uma parte da mídia o fez ‘Deus’, o sujeito que veio para salvar. Me lembro que uma vez ouvi do general [Eduardo] Villas Bôas: ‘Ah, a gente deve tudo a esse Sergio Moro’. Acho que havia essas considerações em setores muito importantes”, afirmou o ministro.

“Acho que ele acreditou nesse personagem criado por vocês mesmos, da mídia. Depois, ele passa a se confrontar com essa dura realidade que é viver em Brasília, ter um isolamento no próprio Congresso Nacional, ver ameaçado o seu mandato. (…) Certamente ele achou que era bom ter interlocução até com pessoas que, no passado, tipificava como inimigo ou adversário”, completou.

“Aí eu disse assim [para Moro]: ‘O Senado é um bom lugar’. (…) A biblioteca é famosíssima, é excelente. E você revela algumas lacunas de formação, então aproveite a chance que você está tendo no Senado – e obviamente que ele não está lá muito ocupado… Mergulhe-se na biblioteca. É uma chance de suprir esses déficits de informação e formação”, provocou Gilmar.

Moro, na entrevista ao Estadão, preferiu não revelar o conteúdo do diálogo com Gilmar Mendes, alegando ter sido um encontro privado, mas o ministro preferiu tornar pública a conversa, como se tal atitude merecesse aplausos.

O ministro do STF tem razão quando afirma que parte da imprensa endeusou Sérgio Moro na esteira da Lava-Jato, atitude que sempre criticamos, mas Gilmar recorre à mesma imprensa para dar vazão à necessidade de se expor cada vez mais.

É digna de elogios a postura circunspecta das ministras Cármen Lúcia e Rosa Weber (aposentada compulsoriamente), ambas reservadas em entrevistas e avessas a declarações fora do ambiente do tribunal ou de compromissos institucionais.

A quem interessa informações que acirram os ânimos? Certamente aos que fermentam a polarização política que deteriora as instituições e corrói o País. O que há de positivo nas entrevistas citadas e o quanto são importantes para a sociedade? A resposta é difícil, quase impossível.

Talvez seja o momento de a imprensa rever seu papel, deixando de lado o viés patológico da informação. Não se trata de “varrer a poeira para debaixo do tapete”, pelo contrário, mas de priorizar matérias jornalísticas propositivas e esclarecedoras, sem jamais abandonar o compromisso de informar com responsabilidade. Há considerável diferença entre noticiar a realidade dos fatos e fomentar zonas de confronto. Também há sensível diferença entre jornalismo de tatame e jornalismo que denuncia crimes praticados por agentes do Estado.

Já mencionei em artigo anterior que a cada 24 horas o volume de informações quadruplica na internet. São informações rasas, vazias e insignificantes, mas que rendem fortunas aos que as veiculam. Para constatar esse quadro basta analisar com calma a repercussão de notícias publicadas em redes sociais.

Antes do advento das ferramentas cibernéticas (computadores, smartphones, redes sociais e outros badulaques), éramos felizes e não sabíamos. Felizes éramos também quando para conversar com alguém recorríamos ao orelhão da esquina mais próxima. O avanço da tecnologia permitiu algumas conquistas, é verdade, mas devo reconhecer que informações falsas, discursos de ódio e embates descabidos, aos bolhões por toda parte, revelam o fracasso da humanidade. A imprensa não tem o direito de impulsionar isso.

Quanto maior for o volume de informações de qualidade, baseadas na verdade e com análises responsáveis dos fatos, maior será a conscientização política do cidadão, o que reduz de forma contínua a perpetuação dos profissionais da política. O caminho é longo e árduo, mas é preciso dar o primeiro passo. A democracia brasileira continua sob ameaça!

(*) Ucho Haddad é jornalista político e investigativo, analista e comentarista político, fotógrafo por devoção.

As informações e opiniões contidas no texto são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo obrigatoriamente o pensamento e a linha editorial deste site de notícias.


Se você chegou até aqui é porque tem interesse em jornalismo profissional, responsável e independente. Assim é o jornalismo do UCHO.INFO, que nos últimos 20 anos teve participação importante em momentos decisivos do País. Não temos preferência política ou partidária, apenas um compromisso inviolável com a ética e a verdade dos fatos. Nossas análises políticas, que compõem as matérias jornalísticas, são balizadas e certeiras. Isso é fruto da experiência de décadas do nosso editor em jornalismo político e investigativo. Além disso, nosso time de articulistas é de primeiríssima qualidade. Para seguir adiante e continuar defendendo a democracia, os direitos do cidadão e ajudando o Brasil a mudar, o UCHO.INFO precisa da sua contribuição mensal. Desse modo conseguiremos manter a independência e melhorar cada vez mais a qualidade de um jornalismo que conquistou a confiança e o respeito de muitos. Clique e contribua agora através do PayPal. É rápido e seguro! Nós, do UCHO.INFO, agradecemos por seu apoio.