Chove lá fora, e aqui

(*) Marli Gonçalves

Chove lá fora, e chove de um tudo, muito além da água que inunda um Estado inteiro. Nossos olhos chovem incontroláveis vendo as cenas da tragédia no Sul. Mas chove também preconceito, tirania, violência, mentiras e incompreensão.

Uma chuva para a qual não adianta abrir guarda-chuvas, porque não existe nenhum tão grande e forte que nos resguarde de tantos acontecimentos que, pasmos, assistimos nos últimos tempos molhados e escaldados pós-pandemia, aquela que acreditamos severamente que mudaria o mundo para melhor. Piorou. E parece que muito.

Guerras se multiplicam e permanecem, e os que as promovem mantêm seus ouvidos moucos a qualquer apelo de cessar-fogo, acordos, tentativas de mediação de nações e organismos internacionais cada vez mais fracos. Vencem os senhores da guerra, os donos das armas.

Não são os alquimistas que estão voltando. São os moralistas e hipócritas haja visto a impressionante avalanche deles que, por exemplo, sucedeu o show de Madonna, inundando, sim, todas as redes sociais, e com comentários inacreditáveis em pleno 2024. Pior, os chatos foram quem botaram galochas para fazê-los, alguns muitos anônimos; outros, infelizmente, entre nossos próprios grupos e amigos, o que foi mais terrível constatar, apareceram mostrando a verdadeira cara. Há muito não lia tanta hipocrisia, moralismo barato, desconhecimento, maldade, absurdos e bobagens como nessa semana, ultrapassando qualquer limite. Nunca tinham visto, talvez, um espetáculo livre de amarras, curtido um rock, ido a um teatro, lido um texto forte de tantos autores que temos, e não é de hoje, odeiam a arte. Ah, também não fazem sexo; Oh! – mas o que é isto? Não têm prazer, nem admitem que exista, que há quem goste, que a diversidade abriu as portas, escancarou as janelas.

Até parece. Santos do pau muito oco. São os mesmos que alimentam a audiência absurda de sites e perfis pornô, e nem se fala mais no escurinho do cinema. Ficaram mais incomodados ainda porque o espetáculo passou também na tevê, além daquele um milhão e meio de pessoas registrado nas areias de Copacabana, e que tudo correu em paz, ao contrário do que eles previam e até apostavam contra. Aliás, eles também assistiram, alguns até pessoalmente, como a turma da extrema direita captada mexendo os pezinhos com a música e que depois correram para se explicar para seu grupo maldito. Um deles ousou dizer que foi ao show de Madonna porque ela é “amiga de Israel”.

Chove ignorância. Chove preconceito, e no caso também mais uma mostra do etarismo que condena as mulheres – Madonna, 65 anos, quase 66! Nem viram nada quando ela chegar aos 80 rebolando mais que Mick Jagger quase com 81, ambos leoninos da gema.

Chove, acima de tudo, negacionistas, uma enchente. Negacionistas, não só de mudanças climáticas, embora já claramente as estejamos vivendo. Negam tudo que não seja para eles. Gostariam que o mundo regredisse ao estágio que sonham ainda poderiam controlar, e que nos tiraria os direitos tão duramente conquistados. Se aproveitam inclusive da liberdade, que conquistamos, pela qual tantos morreram, para espalhar sem limites as mentiras, o ódio e a tirania, as malditas divisões que promovem.

Essa chuva de horror tem de parar, para evitar novas tragédias que nos enlameiem ainda mais enquanto sociedade civilizada.

(*) Marli Gonçalves – Jornalista, consultora de comunicação, editora do Site Chumbo Gordo, autora de “Feminismo no Cotidiano – Bom para mulheres. E para homens também”, pela Editora Contexto. À venda nas livrarias e online, pela Editora e pela Amazon.

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