O advento da internet derrubou barreiras, permitindo o acesso a informações e a conexão entre pessoas. Com o surgimento de programas de informática e aplicativos, essa conexão ampliou consideravelmente, mas os usuários ficaram vulneráveis aos arroubos dos mal-intencionados.
Agora, com a chegada da chamada inteligência artificial, o perigo tornou-se ainda maior, pois tal ferramenta pode ser usada para fins ilícitos. Entretanto, o que mais assusta nesse universo de infinitas possibilidades é a desinteligência natural de alguns seres humanos, algo potencializado pelo oportunismo barato e pela sensação de impunidade.
O UCHO.INFO acompanha há anos um cipoal de casos envolvendo o mercado de telefonia. Os escândalos vão desde a abertura de empresas em nome de terceiros, conhecidos como “laranjas”, até a baixa indevida de faturas de serviços de telefonia celular, com pagamentos de propina aos operadores do esquema criminoso. Temos comprovantes de transferência de numerários para o líder do esquema, que, certamente, causa inveja aos mais criativos roteiristas de Hollywood.
O mais novo capítulo dessa epopeia, que em breve estará na mira da Justiça e do Ministério Público, envolve uma empresa de máquinas de cartões de crédito, a CeoPag, cujos donos ocuparam cargos executivos em empresas de telefonia.
No Brasil, assim como em inúmeros países, alcançar o sucesso exige não apenas talento, mas dedicação espartana, seja no universo das artes, seja na seara dos esportes.
Na esteira do sucesso de terceiros, com o intuito de promover e divulgar nas redes sociais os serviços da CeoPag, empresa de máquinas de cartão de crédito, seus diretores usaram indevidamente imagens de renomados artistas brasileiros, como, por exemplo, o cantor e compositor Chico Buarque e a atriz e produtora teatral Renata Sorrah.
A ousadia dos donos da empresa em questão chega ao ponto de apostar na impunidade para levar adiante uma ação de marketing duvidosa e eivada de irregularidades.
A cada 24 horas, a rede mundial de computadores como um todo, considerando também aplicativos e redes sociais, quadriplica o volume de informações, ou seja, o conteúdo publicado na internet é raso, não sem antes ser questionável.
Infectado pelo vírus do imediatismo, o usuário das redes sociais é atropelado por uma avalanche de informações, sem que detalhes importantes sejam analisados com a devida prudência.
No caso do uso indevido das imagens de Chico Buarque e Renata Sorrah, como mostram as imagens abaixo, o UCHO.INFO consultará os respectivos representantes e agentes para saber se alguma autorização foi dada à empresa de máquinas de cartões de crédito.
Considerando a possiblidade de a resposta de ambos os agentes serem negativas, está-se diante de ilícito gravíssimo que enseja o acionamento da Justiça para reparação de danos morais e financeiros, com cifras que podem chegar a muitos dígitos.
Durante o trabalho de pesquisa e investigação jornalística, o UCHO.INFO descobriu que a CeoPag tem parceria com a Valecard, empresa de gestão de benefícios por meio de cartões eletrônicos.
Assim como a parceira CeoPag, a Valecard, adotando o mesmo modus operandi, também utilizou indevidamente imagens da judoca Beatriz Souza, medalha de ouro nos Jogos Olímpicos de Paris, e da cantora Joelma, da banda Calypso, com o objetivo de promover os serviços da empresa nas redes sociais, como mostram os “prints” abaixo.
Especialistas e Direito e a legislação vigente
O sítio eletrônico Jusbrasil traz artigo de autoria da advogada Débora Spagnol, que ressalta: “A forma universal, o direito de imagem nasceu, mesmo que de forma implícita, na “Declaração Universal dos Direitos do Homem”, aprovada em 1948 pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas. Foi reforçado por meio do “Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos” de 1966, que consagrou o direito à liberdade de expressão, que se traduz no direito de receber e difundir informação de qualquer natureza, ressalvado o respeito à reputação das demais pessoas.”
Mais adiante, Spagnol escreve: “O direito de imagem é considerado como direito de personalidade autônomo. E se refere à projeção da personalidade física da pessoa: seu corpo, atitudes, sorriso, vestimenta, traços fisionômicos, etc.”
Em outro trecho, a advogada detalha o direito de imagem. “Para que se compreenda o conceito jurídico de “imagem”, é importante dividi-lo em duas vertentes: a imagem-retrato, que consiste na proteção que se dá à imagem física da pessoa, desde que identificáveis (corpo, atitudes, sorriso, vestimenta, traços fisionômicos). Diz respeito também ao contexto de sua inserção. Exemplo: uma pessoa extremamente religiosa é fotografada ao lado de uma casa de prostituição. E a imagem-atributo, que de forma simples pode ser definida como a imagem construída pela pessoa dentro do seu convívio social através dos seus atos e comportamentos. Ambas são autônomas e independentes.”
O UCHO.INFO consultou dois especialistas em Direito para esclarecer pontos sobre o uso indevido de imagem. O advogado e professor Eduardo Salles Pimenta, renomado especialista em Direito Autoral, foi taxativo ao afirmar que em ambos os casos está patente “a violação ao direito de personalidade, em especial no que se refere à imagem-atributo”.
A professora Gisele Leite, Mestre e Doutora em Direito, também foi categórica ao dizer que não há como negar os ilícitos cometidos pelas duas empresas. “O Direito de imagem é violado sempre que alguém, seja pessoa física ou jurídica, utilizar da imagem de um indivíduo sem a autorização deste ou de sua família. Vale lembrar que existem exceções a essa regra, portanto, em alguns casos, o uso da imagem é permitido mesmo que sem autorização de quem está na imagem”, frisou a professora de Direito.
Gisele Leite destacou entendimento da jurista e advogada Maria Helena Diniz, professora titular de Direito Civil na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, onde obteve o seu mestrado e doutorado. Diniz é tácita em sua afirmação: “A imagem como representação física da pessoa, seja no todo ou em partes, é aquela que identifica o sujeito. Sabe-se que para que esta seja utilizada, independentemente do meio, deve a divulgação ser autorizada pelo titular, ressalvados os casos previstos no art. 20 do Código Civil. Este também prevê que havendo violação desse direito, ou seja, quando houver divulgação de imagem sem autorização do titular, de forma a causar transtornos e lhe atingir negativamente a respeitabilidade e boa fama, deverá haver indenização.”
A professora Gisele Leite também citou que a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º inciso X, estabelece que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.
“Toda pessoa tem o seu direito de imagem e, por esta razão, publicar material sem autorização prévia pode acarretar um processo judicial requerendo dano moral e material, como descrito no artigo da Constituição”, lembrou a professora.
Gisele Leite ressaltou que “toda pessoa tem o seu direito de imagem e, por esta razão, publicar material sem autorização prévia pode acarretar um processo judicial, requerendo dano moral e material, como descrito no artigo da Constituição”.
Mas não é só a Constituição que defende os direitos de imagem de cada cidadão, o Código Civil também protege o direito. O Código Civil também traz regras sobre o direito de imagem e o classifica como um direito da personalidade. Em seu artigo 20, o mencionado diploma, dentre outras disposições, veda a exposição ou utilização da imagem de alguém sem permissão, caso o uso indevido atinja sua honra, boa-fama, respeito ou se destine a fins comerciais. Contudo, há situações nas quais o uso da imagem independe de autorização, quando, por exemplo, for necessário à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública.
Em outro vértice do conjunto legal do País, o Código de Defesa do Consumidor, no artigo 37, considera propaganda enganosa quando esta induz o consumidor ao erro, ou seja, quando traz uma informação falsa.
“VII – induzir o consumidor ou usuário a erro, por via de indicação ou afirmação falsa ou enganosa sobre a natureza, qualidade do bem ou serviço, utilizando-se de qualquer meio, inclusive a veiculação ou divulgação publicitária; Pena – detenção, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, ou multa.”
Em ambos os casos é evidente que as empresas induziram o consumidor a erro, pois nenhuma das figuras públicas que tiveram as respectivas imagens utilizadas indevidamente endossaram os serviços anunciados nas redes sociais.
Memes
Alguém poderia alegar que as imagens acima são “memes”, palavra de origem grega que significa imitação. No universo cibernético, meme é uma mensagem quase sempre de tom jocoso ou irônico que pode ou não ser acompanhada por uma imagem ou vídeo e que é intensamente compartilhada por usuários nas mídias sociais.
De acordo com definição disponível na rede mundial de computadores, “os memes podem ser usados em diversas situações, como piadas, campanhas publicitárias, forma de linguagem e até nas divulgações de marcas e serviços na internet”. Mesmo que sejam utilizados em campanhas publicitárias, os memes relacionados a figuras públicas dependem da devida e prévia autorização.
Condenação recente
O Magazine Luiza foi condenado pela Justiça de São Paulo a indenizar uma modelo devido ao uso irregular de sua imagem por uma das empresas do grupo, em propagandas de um protetor solar. A empresa fechou acordo no valor de R$ 75 mil, que terminou de ser pago em julho passado.
A modelo Ana Cláudia Neri, que teve a própria imagem utilizada em material publicitário do protetor Sunmax entre 2016 e 2020, acionou a Justiça contra o Magalu em maio de 2022. Ela cobrou reparações depois de descobrir que o site da Época Cosméticos, que integra o grupo varejista, usou a imagem do seu rosto no material de propaganda durante três anos, entre novembro de 2018 e novembro de 2021, sem a necessária autorização.
Em novembro de 2022, a juíza da 36ª Vara Cível do Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu a favor de Ana Cláudia e condenou o Magazine Luiza ao pagamento de R$ 30 mil por danos morais, R$ 30 mil por danos materiais, ambas punições corrigidas e com juros, além do repasse de lucros decorrentes das vendas dos produtos promovidos com a imagem da modelo.
Após não responder à notificação e ser processada à revelia em primeira instância, a empresa recorreu à segunda instância, mas foi derrotada. O Magalu fechou acordo com a defesa da modelo, informando ao Juízo o pagamento de três parcelas no valor de R$ 25 mil, entre maio e julho de 2024.
A palavra da CeoPag
Em 5 de agosto passado, o UCHO.INFO entrou em contato, por WhatsApp, com um dos diretores da CeoPag, Fontoura Nabuco de Moraes Neto, questionando o uso indevido das imagens de Chico Buarque e Renata Sorrah. Na ocasião, Moraes Neto respondeu: “Vou verificar com a agência do que se trata, quando e como foi feito isso.”
Na segunda-feira (2), sem ter resposta depois que quase um mês, o UCHO.INFO entrou em contato mais uma vez, por WhatsApp, com Fontoura Nabuco, que respondeu: “a agência nossa disse que vai retirar o material”.
Diante de tal resposta, é possível concluir que a CeoPag não teve, por ocasião das publicações, a necessária autorização para utilizar as imagens de Chico Buarque e Renata Sorrah.
O UCHO.INFO tentou contato com a Valecard, mas não conseguiu falar com os responsáveis pela empresa para esclarecer o uso das imagens da judoca Beatriz Souza e da cantora Joelma. Lembramos que desde já, respeitando o bom jornalismo, o espaço está aberto para a manifestação das duas companhias.
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