Na edição de 10 de setembro de 2024, o UCHO.INFO publicou matéria sobre o uso indevido da imagem de pessoas públicas. Empresas que apostam na impunidade para impulsionar os próprios negócios adotam tal prática sem autorização das celebridades e, consequentemente, não pagam pelo uso das respectivas imagens nas redes sociais. Mariano José Pereira da Fonseca, o Marquês de Maricá, escreveu: “A impunidade é segura, quando a impunidade é geral”.
Uma das empresas, a Ceopag, que opera com máquinas de cartão de crédito, utilizou as imagens do cantor e compositor Chico Buarque e da atriz e produtora teatral Renata Sorrah. Procurada em duas ocasiões, a Ceopag respondeu, na primeira vez, que a responsabilidade pelo uso das imagens era da agência contratada para cuidar das suas redes sociais. Alegou que as imagens seriam retiradas do perfil da empresa no Instagram. A informação foi dada por um dos diretores da empresa, Fontoura Nabuco de Moraes Neto, que afirmou: “Vou verificar com a agência do que se trata, quando e como foi feito isso.”
No dia 8 de outubro, um mês após a publicação da matéria anterior, constatamos que as imagens de Chico Buarque e de Renata Sorrah continuavam no perfil da Ceopag no Instagram. Entramos em contato com a empresa, cuja sede fica em São José do Rio Preto, importante cidade do interior paulista. Tentamos falar com o diretor-geral da empresa, Kawell Rodrigo Lotti. Informamos à secretária que estávamos produzindo matéria sobre a Ceopag e solicitamos retorno.
No mesmo dia, como se mágica fosse, Fontoura Neto, sócio da Ceopag, contatou o UCHO.INFO por meio do WhatsApp para informar que as imagens seriam removidas do perfil. O empresário responsabilizou a “agência antiga” pelo uso indevido das imagens.
No dia seguinte, 9 de outubro, independentemente da informação fornecida por Fontoura Neto, tentamos mais uma vez contato com Kawell Lotti. Não fomos atendidos e deixamos recado com a secretária, reforçando a importância do assunto.
Sem retorno por parte de Kawell, decidimos monitorar o perfil da Ceopag para certificar que imagens de personalidades não seriam utilizadas novamente. O perfil da empresa no Instagram – de acordo com Fontoura Neto estava sob a responsabilidade da “agência antiga” – voltou a publicar indevidamente imagens de pessoas públicas, inclusive internacionais.
No domingo, 10 de novembro, o UCHO.INFO acessou o perfil da Ceopag no Instagram e constatou que a imagem de Renata Sorrah não foi removida, ao contrário da afirmação de Fontoura Nabuco de Moraes Neto (no canto inferior direito da imagem é possível conferir a data e o horário da pesquisa).
Para piorar um cenário de contumaz transgressão, a empresa utilizou as imagens do consagrado ator norte-americano Morgan Freeman e do compositor e rapper estadunidense Kanye West.
Não obstante, tudo indica não existir fronteira para a ousadia comercial da Ceopag. Até mesmo o famoso quadro que retrata a proclamação de independência do Brasil, de autoria do pintor francês François-René Moreaux (1807-1860), foi alvo da sanha irresponsável da empresa de máquinas de cartão, como mostra a imagem abaixo.
A imagem adulterada do quadro de Moreaux está ladeada pelo seguinte texto: “Hoje celebramos a Dia da Independência do Brasil e quem tem Ceopag sabe como é esse sentimento ao vender com maquininhas que garantem a liberdade de parcelar em até 12x e receber o valor integral no dia seguinte, contando com o Banco Digital Ceopag e o app delivery de tudo!”.
Há sensível diferença entre comemorar o “Dia da Independência” e colocar na mão de Dom Pedro I, então príncipe regente, uma máquina de cartão da Ceopag.
Especialistas em Direito e a legislação vigente
O sítio eletrônico Jusbrasil traz artigo de autoria da advogada Débora Spagnol, que ressalta: “A forma universal, o direito de imagem nasceu, mesmo que de forma implícita, na “Declaração Universal dos Direitos do Homem”, aprovada em 1948 pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas. Foi reforçado por meio do “Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos” de 1966, que consagrou o direito à liberdade de expressão, que se traduz no direito de receber e difundir informação de qualquer natureza, ressalvado o respeito à reputação das demais pessoas.”
Mais adiante, Spagnol escreve: “O direito de imagem é considerado como direito de personalidade autônomo. E se refere à projeção da personalidade física da pessoa: seu corpo, atitudes, sorriso, vestimenta, traços fisionômicos, etc.”
Em outro trecho, a advogada detalha o direito de imagem. “Para que se compreenda o conceito jurídico de “imagem”, é importante dividi-lo em duas vertentes: a imagem-retrato, que consiste na proteção que se dá à imagem física da pessoa, desde que identificáveis (corpo, atitudes, sorriso, vestimenta, traços fisionômicos). Diz respeito também ao contexto de sua inserção. Exemplo: uma pessoa extremamente religiosa é fotografada ao lado de uma casa de prostituição. E a imagem-atributo, que de forma simples pode ser definida como a imagem construída pela pessoa dentro do seu convívio social através dos seus atos e comportamentos. Ambas são autônomas e independentes.”
O UCHO.INFO consultou dois especialistas em Direito para esclarecer pontos sobre o uso indevido de imagem. O advogado e professor Eduardo Salles Pimenta, renomado especialista em Direito Autoral, foi taxativo ao afirmar que em ambos os casos está patente “a violação ao direito de personalidade, em especial no que se refere à imagem-atributo”.
A professora Gisele Leite, Mestre e Doutora em Direito, também foi categórica ao dizer que não há como negar os ilícitos cometidos pelas duas empresas. “O Direito de imagem é violado sempre que alguém, seja pessoa física ou jurídica, utilizar da imagem de um indivíduo sem a autorização deste ou de sua família. Vale lembrar que existem exceções a essa regra, portanto, em alguns casos, o uso da imagem é permitido mesmo que sem autorização de quem está na imagem”, frisou a professora de Direito.
Gisele Leite destacou entendimento da jurista e advogada Maria Helena Diniz, professora titular de Direito Civil na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, onde obteve o seu mestrado e doutorado. Diniz é tácita em sua afirmação: “A imagem como representação física da pessoa, seja no todo ou em partes, é aquela que identifica o sujeito. Sabe-se que para que esta seja utilizada, independentemente do meio, deve a divulgação ser autorizada pelo titular, ressalvados os casos previstos no art. 20 do Código Civil. Este também prevê que havendo violação desse direito, ou seja, quando houver divulgação de imagem sem autorização do titular, de forma a causar transtornos e lhe atingir negativamente a respeitabilidade e boa fama, deverá haver indenização.”
A professora Gisele Leite também citou que a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º inciso X, estabelece que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.
“Toda pessoa tem o seu direito de imagem e, por esta razão, publicar material sem autorização prévia pode acarretar um processo judicial requerendo dano moral e material, como descrito no artigo da Constituição”, lembrou a professora.
Gisele Leite ressaltou que “toda pessoa tem o seu direito de imagem e, por esta razão, publicar material sem autorização prévia pode acarretar um processo judicial, requerendo dano moral e material, como descrito no artigo da Constituição”.
Mas não é só a Constituição que defende os direitos de imagem de cada cidadão, o Código Civil também protege o direito. O Código Civil também traz regras sobre o direito de imagem e o classifica como um direito da personalidade. Em seu artigo 20, o mencionado diploma, dentre outras disposições, veda a exposição ou utilização da imagem de alguém sem permissão, caso o uso indevido atinja sua honra, boa-fama, respeito ou se destine a fins comerciais. Contudo, há situações nas quais o uso da imagem independe de autorização, quando, por exemplo, for necessário à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública.
Em outro vértice do conjunto legal do País, o Código de Defesa do Consumidor, no artigo 37, considera propaganda enganosa quando esta induz o consumidor ao erro, ou seja, quando traz uma informação falsa.
“VII – induzir o consumidor ou usuário a erro, por via de indicação ou afirmação falsa ou enganosa sobre a natureza, qualidade do bem ou serviço, utilizando-se de qualquer meio, inclusive a veiculação ou divulgação publicitária; Pena – detenção, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, ou multa.”
Em ambos os casos é evidente que as empresas induziram o consumidor a erro, pois nenhuma das figuras públicas que tiveram as respectivas imagens utilizadas indevidamente endossaram os serviços anunciados nas redes sociais.
Memes
Alguém poderia alegar que as imagens acima são “memes”, palavra de origem grega que significa imitação. No universo cibernético, meme é uma mensagem quase sempre de tom jocoso ou irônico que pode ou não ser acompanhada por uma imagem ou vídeo e que é intensamente compartilhada por usuários nas mídias sociais.
De acordo com definição disponível na rede mundial de computadores, “os memes podem ser usados em diversas situações, como piadas, campanhas publicitárias, forma de linguagem e até nas divulgações de marcas e serviços na internet”. Mesmo que sejam utilizados em campanhas publicitárias, os memes relacionados a figuras públicas dependem da devida e prévia autorização.
Em artigo publicado na internet (“O Uso de Memes em Propagandas e Posts em Redes Sociais”), a advogada Marina Flandoli, especialista em Direito Empresarial – com foco em propriedade intelectual, digital e contratos –, cita, assim como a professora Gisele Leite, o inciso X do artigo 5º da Constituição Federal: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.
No texto, Flandoli afirma que é possível a utilização do meme, “desde que sua empresa tenha obtido autorização do autor do meme e/ou da pessoa nele retratada para essa finalidade”.
No caso da chamada “viralização”, Marin Flandoli é clara e didática ao explicar o uso de memes com fins comerciais. “Enquanto os memes são compartilhados pelas pessoas sem qualquer finalidade econômica (comercial/publicitária) em perfis pessoais, pode não chamar a atenção do autor ou da pessoa cuja imagem está sendo retratada. Aliás, é bem difícil controlar e querer parar essa viralização. Mas, quando uma empresa faz isso para divulgar sua marca, produto ou serviço, acaba virando alvo mais fácil de pedidos de indenizações pelo uso indevido, não autorizado.”
“Ou seja, mesmo que haja viralização do meme isso não faz com que o autor e/ou o titular da imagem perca o direito a essa compensação quando está sendo utilizado para finalidade comercial por meio de propaganda na internet, ainda que a empresa apenas esteja repostando sem, aparentemente, promover um determinado produto/serviço, pois o objetivo de um perfil empresarial é, por natureza, divulgar a marca da empresa”, completa a advogada.
Indenização e quebra de sigilo
Além do que estabelece a Constituição Federal no âmbito da violação da imagem e da honra das pessoas, “assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral”, o Código Civil, como citado acima, veda a exposição ou utilização da imagem de alguém sem permissão, caso o uso indevido atinja sua honra, boa-fama, respeito ou se destine a fins comerciais.
Diante do que a legislação estabelece, inconteste é o direito à indenização do cantor Chico Buarque e da atriz Renata Sorrah, assim como do ator Morgan Freeman e do rapper Kanye West.
Nos casos das personalidades acima mencionadas, os pedidos de indenização terão de levar em conta não apenas o dano à imagem de cada uma, mas também os valores obtidos pela Ceopag com a utilização indevida e sem autorização das respectivas imagens.
Há um detalhe a ser considerado na seara dos pedidos de indenização. A Ceopag passou a divulgar nas redes sociais que as máquinas de cartões da empresa também aceitam pagamentos em criptomoedas, cujos valores são convertidos imediatamente em Real e creditados na conta do operador do equipamento.
Esse cenário, que agora envolve criptomoedas, tem potencial de sobra para levar ao pedido de quebra de sigilo fiscal e bancário, como forma de apurar a capacidade financeira da empresa e determinar o valor da indenização a que têm direito aqueles cujas imagens foram utilizadas para fins comerciais e econômicos sem a necessária e prévia autorização.
A professora Gisele Leite destaca decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo no escopo da utilização da imagem de um jogador de futebol em um álbum de figurinhas, sem a devida autorização.
O relator do recurso, desembargador Álvaro Passos, foi incisivo em seu voto, de outubro de 2022: “Trata-se de um produto comercial amplamente conhecido, comercializado certamente com intuito de lucro pela empresa demandada, que é conhecida mundialmente no ramo, não tendo como se negar a pretensão lucrativa do produto”.
Eventual quebra de sigilo, algo que na opinião da professora Gisele Leite é possível e necessário, colocará em risco um sem-fim de clientes da empresa, os quais terão dissecadas suas operações comerciais e financeiras por meio de cartões de crédito, débito e benefícios, além dos que utilizaram a moeda virtual para pagamento. Ademais, um pedido de tutela antecipada no âmbito de ação indenizatória não deve ser descartado.
Considerado o fato de que a Ceopag afirma nas redes sociais ser um “banco digital”, o caso pode facilmente bater à porta do Banco Central. Em outras palavras, a falta de criatividade da “agência antiga” e a sensação de impunidade da empresa podem levar a uma devassa sem precedentes. Resumindo, não se faz mais no Brasil publicitário criativo.
O UCHO.INFO já prepara os devidos dossiês que serão enviados às personalidades que tiveram as respectivas imagens usadas indevidamente, assim como aos seus representantes, e às autoridades brasileiras e norte-americanas para que as medidas cabíveis sejam tomadas com celeridade. (Imagem da Justiça: Infojud)
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