Não quero louros, mas a grande imprensa descobriu somente agora algo por que lutei há 20 anos

(*) Ucho Haddad

No último artigo escrevi sobre a irresponsabilidade que é trocar o jornalismo pelo sensacionalismo e pela lacração. Afirmei que o velho, bom e verdadeiro jornalismo vem perdendo terreno de forma contínua.

Há dias, vários veículos de imprensa noticiaram que o governo de São Paulo devolverá aos contribuintes que tiveram carros roubados em 2024 o valor proporcional do IPVA referente ao período em que o bem deixou de existir. Desde 2008, com base na Lei do IPVA, o governo paulista reembolsa os contribuintes que tiveram o automóvel roubado e não recuperado. Bom-mocismo do governo? Não, mera obrigação.

Além do sensacionalismo e da lacração, que abomino, há quem faça jornalismo visando, às vezes em segundo plano, certas premiações. O maior e mais importante troféu que conquistei ao longo de décadas de jornalismo é a consciência tranquila por ter informado o leitor de maneira clara e responsável, com base na verdade dos fatos, esclarecendo cada um deles.

Muito além disso, sempre defendi que jornalistas não devem se ater a notícias sobre decisões políticas e escândalos, que existem aos bolhões em todos os cantos do Brasil. É preciso ir mais longe, principalmente quando muitos aceitam a tese de que a imprensa é o quarto Poder. Discordo desse entendimento. O papel da imprensa é fiscalizar os Poderes constituídos, denunciando aquilo que está fora da regra, que infringe a lei, que prejudica o cidadão.

Não contente com os limites que alguns impõem ao jornalismo, acredito que é possível fazer muito mais pelo Brasil e pelos brasileiros, que não apenas denunciar e, ato contínuo, esquecer as denúncias no dia seguinte. É preciso produzir matérias com o viés da proposição, é necessário provocar aqueles que fazem as leis.

Não quero louros, diplomas, medalhas e outros badulaques, mas preciso registrar que a devolução proporcional do IPVA aos proprietários de veículos roubados só se tornou realidade porque decidi colocar a mão no vespeiro, provocando legisladores até a aprovação de uma lei que é absolutamente justa.

A explicação é simples: a Constituição Federal é cristalina ao estabelecer no artigo 5º (caput): “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”.

No capítulo dedicado aos Direitos Sociais, a Constituição é igualmente clara ao estabelecer no artigo 6º que a segurança é direito do cidadão e dever do Estado. De igual modo, a Carta Magna, no artigo 144, não deixa dúvida ao determinar: “A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio”.

Diante das mencionadas garantias constitucionais, reter o valor proporcional do IPVA de um veículo roubado configuraria crime de apropriação indébita, para não me alongar no campo do Direito Penal. O raciocínio é simples! O patrimônio deixa de existir por incompetência do Estado no campo da segurança pública, mas o mesmo Estado pode ficar com o valor do tributo que incide sobre o bem que não mais existe? Se nesse caso prevalece o dito popular “farinha pouca, meu pirão primeiro”, que o pirão seja servido ao contribuinte.

Tão logo comecei a escrever sobre o direito do contribuinte de reaver o valor proporcional do IPVA, determinado governador, figura proeminente no meio político, disse-me que tenho prazer em arrumar confusão. Estávamos voando para Brasília, sentados lado a lado. Respondi que não se tratava de arrumar confusão, mas de fazer valer o direito do cidadão, que a muito custo financia uma máquina ineficiente, paquidérmica e corrupta. Detalhei o meu entendimento e a interpretação da lei ao governador, que acabou por me dar razão.

Jornalismo é isso, é defender os interesses e os direitos da população, não é somente denunciar escândalos, noticiar medidas econômicas e tantas mazelas mais. É claro que já denunciei muitos casos de corrupção, alguns deles de repercussão internacional, mas é preciso ter um olhar atento na direção daqueles que mais precisam, que não flanam nos céus dos poderosos. Quem conhece as catacumbas do poder sabe como tudo acontece, já sentiu o mau cheiro do desmando, da maracutaia, da corrupção.

Permito-me ir além nesse raciocínio que envolve a incompetência do Estado. Há muitos anos, algum integrante do governo de São Paulo sugeriu que os motoristas não dirigissem com a janela do carro aberta como forma de evitar a ação de criminosos. Pois bem, moramos em um país eminentemente tropical, cada vez mais quente, mas o sujeito que não tinha carro com ar-condicionado deveria derreter para, em tese, não despertar o interesse dos ladrões. Como diz o sempre bem-humorado jornalista José Simão (Folha e Band News), “o Brasil é o país da piada pronta”.

Não demorou muito e surgiu um Aladim de camelô para sugerir que as pessoas deixassem de circular pela cidade de São Paulo usando tênis caros e de marcas cobiçadas. Ora, o sujeito compra um tênis por preço elevado, que traz embutida carga tributária exorbitante, mas o calçado deve permanecer no armário, talvez para desfilar na sala de casa? De duas uma: se cobrir vira circo, se cercar vira hospício.

Volto à irresponsabilidade do Estado… Roubo de telefone celular não é normal, mas tornou-se comum na maioria das grandes capitais brasileiras. Endossando o escárnio estatal, a população resolveu normalizar o que é anormal. Perdeu, compra outro. Acontece que no ato da compra do celular pagou-se um coquetel de impostos que o Estado embolsou, sem dar a cada um a devida contrapartida, a começar pela segurança pública. O incauto que decidir registrar boletim de ocorrência na delegacia mais próxima deve estar preparado para enfrentar a má vontade dos policiais, que sempre alegam que nada adianta.

Quando as vítimas de celulares roubados decidirem processar o Estado para cobrar indenização pelo bem que deixou de existir, talvez a realidade comece a dar os primeiros passos na direção da mudança. A parte mais sensível do ser humano é o bolso, a do Estado, o cofre. A Constituição Federal endossa meu pensamento.

Sete entre dez ladrões de celulares agem criminosamente porque têm dívidas na “biqueira”, como são conhecidos os pontos de venda de drogas. O tráfico de drogas é deliberado porque o Estado é incompetente no terreno da segurança pública. Lembro também que o tráfico corre solto porque muitos agentes do Estado estão mancomunados com líderes de facções criminosas, que têm no tráfico de drogas importante fonte de renda, talvez a principal. Como se fosse pouco, há policiais que vendem drogas, à luz do dia e na calada da noite, nas chamadas cracolândias. Resumindo, a máquina do crime também é alimentada pelo Estado, ou, sem delongas e rapapés, “se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”.

Quando iniciei a batalha para que o valor proporcional do IPVA fosse devolvido ao contribuinte cujo carro foi roubado, chamaram-me de louco. Quando afirmei que policiais têm envolvimento escandaloso com os chefões das facções criminosas, os quais pagam todos os meses pedágios milionários a algumas autoridades, fui chamado de louco. O mesmo aconteceu quando lutei para garantir o direito de voto aos presos com condenação não definitiva. Louco! Adoro essa minha loucura jornalística. E dela não me separo.

Para concluir, lembro que, como cantou a eterna e genial Rita Lee, estou “nessa canoa furada, remando contra a maré”. E sigo em frente!

(*) Ucho Haddad é jornalista político e investigativo, analista e comentarista político, fotógrafo por devoção.

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