(*) Rizzatto Nunes
Como há muito tempo não cuido de questões jurídicas da área do trabalho, só agora, quando fui verificar alguns aspectos envolvendo os trabalhadores da Vale do Rio Doce no caso da tragédia de Brumadinho, é que vi que na reforma trabalhista feita pela Lei nº 13.467/17, existem regras para a fixação da indenização por danos morais, e indicando como referência o salário do trabalhador, algo que, pelo que penso, é inconstitucional. Explico.
A questão da indenização por dano moral no Brasil tem gerado uma série de avaliações tanto na doutrina como na jurisprudência. Eu mesmo escrevi várias vezes sobre o assunto, que está apresentado em detalhes em alguns dos meus livros (i). Para o presente artigo, o que importa é um dos critérios fixados na lei da reforma trabalhista: o da determinação do valor da indenização em função do salário do trabalhador.
Vejamos o que diz a lei na regulação da apuração e da fixação da indenização do dano moral:
“Art. 223-G – Ao apreciar o pedido, o juízo considerará:
I – a natureza do bem jurídico tutelado;
II – a intensidade do sofrimento ou da humilhação;
III – a possibilidade de superação física ou psicológica;
IV – os reflexos pessoais e sociais da ação ou da omissão;
V – a extensão e a duração dos efeitos da ofensa;
VI – as condições em que ocorreu a ofensa ou o prejuízo moral;
VII – o grau de dolo ou culpa;
VIII – a ocorrência de retratação espontânea;
IX – o esforço efetivo para minimizar a ofensa;
X – o perdão, tácito ou expresso;
XI – a situação social e econômica das partes envolvidas;
XII – o grau de publicidade da ofensa.
§ 1o Se julgar procedente o pedido, o juízo fixará a indenização a ser paga, a cada um dos ofendidos, em um dos seguintes parâmetros, vedada a acumulação:
I – ofensa de natureza leve, até três vezes o último salário contratual do ofendido;
II – ofensa de natureza média, até cinco vezes o último salário contratual do ofendido;
III – ofensa de natureza grave, até vinte vezes o último salário contratual do ofendido;
IV – ofensa de natureza gravíssima, até cinquenta vezes o último salário contratual do ofendido.” (Norma incluída na CLT pela Lei nº 13.467, de 13-7-2017) – Grifei.
Não abordarei a questão dos critérios que devem ser levados em conta pelo Magistrado para a fixação do valor da indenização (que, aliás, estão em sintonia com a posição doutrinária e jurisprudencial). O problema, como antecipei, está na fixação do salário do ofendido prevista no § 1º da norma.
Ora, o que é dano moral? Lembre-se que a palavra “dano” significa estrago; é uma danificação sofrida por alguém, causando-lhe prejuízo. Implica, necessariamente, a diminuição do patrimônio da pessoa lesada.
Moral, pode-se dizer, é tudo aquilo que está fora da esfera material, patrimonial, do indivíduo. Diz respeito à alma, aquela parte única que compõe sua intimidade. O dano moral é aquele que afeta a paz interior de cada um. Atinge o sentimento da pessoa, o decoro, o ego, a honra, enfim, tudo aquilo que não tem valor econômico, mas que lhe causa dor e sofrimento. É, pois, a dor física e/ou psicológica sentida pelo indivíduo.
Uma imagem denegrida, um nome manchado, a perda de um ente querido ou até mesmo a redução da capacidade laborativa em decorrência de um acidente traduzem-se numa dor íntima.
Em que pese o fato de essa dor não ser suscetível de avaliação econômica, uma vez que não atinge o patrimônio material da vítima, sentiu-se a necessidade de reparar o dano sofrido, nascendo, assim, o direito à indenização (i). Porém, com características próprias, que a diferenciam da indenização do dano material.
Com efeito, o substantivo “indenização”, ainda que utilizado de maneira recorrente para tratar do quantum a ser pago àquele que sofreu o dano moral, não tem o mesmo sentido do termo “indenização” empregado para a reparação do dano material.
Como se sabe, a palavra “indenizar”, quando utilizada na relação com o dano material, tem como função reparar o dano causado, repondo o patrimônio desfalcado, levando-o de volta ao status quo ante. Logo, o termo “indenização” tem teleologia voltada à equivalência econômica, especialmente fundada na ideia de que todo bem material pode ser avaliado economicamente, podendo ser reposto por intermédio de seu valor em moeda corrente.
Mas, no dano moral, não há prejuízo material. Então, a indenização nesse campo possui outro significado. Seu objetivo é duplo: satisfativo-punitivo. Por um lado, a paga em pecúnia deverá proporcionar ao ofendido uma satisfação, uma sensação de compensação capaz de amenizar a dor sentida. Em contrapartida, deverá também a indenização servir como punição ao ofensor, causador do dano, incutindo-lhe um impacto suficiente para dissuadi-lo de um novo atentado.
Remanesce-se utilizando o termo “indenização” no caso do dano moral por dois motivos: um de ordem prática – lembra reposição de dano –, outro de conteúdo semântico – de fato o que se manda que o causador do dano moral faça é pagar certo valor em dinheiro. Logo, o substrato é ainda econômico.
Aí está a grande dificuldade enfrentada pelos magistrados: a fixação do valor devido a título de indenização por danos morais. Como já dito, o dano moral é caracterizado pela dor, pelo sofrimento de alguém, em decorrência de um ato danoso; e justamente por ser um sentimento de foro íntimo, pessoal, tal dor é impossível de ser mensurada e, consequentemente, traduzida em cifras.
A fixação de critérios para se encontrar um valor justo é bem-vinda. Nesse sentido, aqueles estampados no caput do art. 223-G da CLT foram bem elaborados e estão em sintonia com os utilizados em muitas decisões judiciais. O problema está no §1º desse artigo: como poderia o legislador colocar como teto o salário do trabalhador que foi violado?
Respondo: não poderia.
Em primeiro lugar, há o problema da colocação de um teto para a fixação da indenização para danos extrapatrimoniais, que aliás é o tema posto na ADI 5.870-DF, que questiona a constitucionalidade dessa norma. O Parecer da Procuradoria-Geral da República é no sentido de sua inconstitucionalidade (ii).
E fixar um teto ligando-o ao salário do trabalhador lesado viola, penso eu, o princípio constitucional da igualdade. Isso porque, como acima exposto, o dano moral implica em dor, sofrimento, padecimento etc., situações íntimas da psiquê e da alma humana. E como a indenização em maior valor tem relação com sofrimento mais forte e/ou mais prolongado, fixar valores diferentes para os trabalhadores atingidos, unicamente com base no salário individual, significa dizer que aquele que ganha menos sofre menos; quem ganha mais sofre mais.
Trata-se de um verdadeiro non sense, um absurdo e, também, algo preconceituoso.
Aliás, seria altamente preconceituoso, por exemplo, dizer que a dor da diretora da empresa seria maior que a dor de sua secretária. Em caso de morte de algum ente querido isso é ainda mais patente. Quem pode dizer que a dor da perda de quem ganha mais é maior da de quem ganha menos?
Acontece que é isso que a norma da CLT diz: aquele trabalhador que ganha mais terá direito a uma indenização por dano moral maior que a do trabalhador que ganha menos. E como essa indenização tem relação direta com o sofrimento da vítima, conclui-se que quem ganha mais sofre mais. Verdadeiro absurdo! Por isso, penso que também por este aspecto essa norma é inconstitucional (iii).
(i) Por exemplo, nos Comentários ao Código de Defesa do Consumidor (São Paulo: Saraiva, 8ª. edição, p. 131 e segs) e no Curso de Direito do Consumidor (São Paulo; Saraiva, 13ª. edição, 2019, págs. 374 e segs).
(ii) Veja o Parecer aqui: https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15339307849&ext=.pdf
(iii) Realço que a situação econômica da vítima é irrelevante. Sequer se deve perguntar da capacidade econômica daquele que sofreu o dano, porque não é em função disso que se vai fixar o valor da indenização.
Ou seja, quer se trate de uma pessoa humilde e sem posses, quer seja uma abastada, isso em nada influi na determinação do quantum.
Não se pode olvidar das características da indenização no caso do dano moral: ela é satisfativo-punitiva. O elemento satisfativo deve ser buscado no evento causador do dano e não na condição econômica da vítima.
Por isso, não tem qualquer validade a alegação, muitas vezes utilizada, de enriquecimento ilícito da vítima. Quando o magistrado determina um valor expressivo como indenização, ele não está olhando para a condição econômica da vítima e/ou se a paga indenitária irá enriquecê-la, mas, sim, está lançando sua investigação no causador do dano.
Enriquecer ou não em função da verba indenizatória é mero acaso, irrelevante para a fixação da quantia a ser paga. Portanto, também não tem importância conhecer o poder econômico da vítima.
(*) Luiz Antônio Rizzatto Nunes é professor de Direito, Mestre e Doutor em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP); Livre-Docente em Direito do Consumidor pela PUC-SP e Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo.