(*) Ucho Haddad
Jornalistas, a exemplo de muitas categorias laborais, são simultaneamente corporativistas e autofágicos, a depender da situação que enfrentam. Quem já experimentou o corporativismo dos profissionais de imprensa sabe o que isso significa. Trata-se de um movimento orquestrado por pessoas que na maior parte do tempo não se toleram e competem entre si de maneira quase selvagem, mas fazem “caras e bocas” quando a classe é supostamente atacada, entendimento que se forma no momento em que um dos seus é alvo de fato polêmico ou de ação intempestiva.
Não temo esse tipo de reação, pois estar jornalista é estar ao lado da verdade, dos direitos do cidadão e da defesa inegociável da democracia. Por essa razão tomo posições sem medo, pois meu compromisso é com aqueles que me dão o privilégio da leitura, algo que para quem escreve é um prêmio inenarrável, apesar de a soberba de muitos ter empurrado isso ao rés do chão. Alvo de insultos por parte de invejosos “coleguinhas” da imprensa e de ameaças disparadas por poderosos, muitos dos quais incomodados com minha atuação jornalística, jamais pensei em recuar, apesar do caos que cada situação criou ao meu redor.
Se minha consciência jamais esteve à venda, minha convicção não frequenta recepções lupanarescas, já que sabujice não é o meu forte, como jamais será. Disse o brilhante e saudoso Darcy Ribeiro: “Só há duas opções nesta vida: se resignar ou se indignar. E eu não vou me resignar nunca.” Assim penso, assim existo, assim faço jornalismo. Sempre indignado, sem sequer pensar em resignação.
Nesta triste quinta-feira, 7 de novembro, a democracia brasileira deu mais um largo e perigoso passo na direção do retrocesso, do obscurantismo, da supressão da liberdade e do direito ao contraditório. O jornalista norte-americano Glenn Greenwald, fundador do site The Intercept Brasil e que trouxe à tona gravações que escancararam a relação espúria entre o então juiz Sérgio Moro e os procuradores da Operação Lava-Jato, em Curitiba, foi alvo de agressão física durante o programa Pânico, da rádio Jovem Pan.
Glenn foi ofendido verbalmente e reagiu de pronto, chamando de “covarde” o jornalista Augusto Nunes, que participava do programa da emissora de rádio paulistana. Nunes, que não gostou de ser chamado de “covarde”, partiu para a agressão física, como se esse tipo de reação solucionasse pendengas pretéritas e divergência de opiniões.
Que a Jovem Pan abraçou o pendão da “direita xucra” (o termo é da lavra do jornalista Reinaldo Azevedo) não resta dúvida, mas é primordial que o direito a opiniões divergentes seja preservado a qualquer custo, inclusive na Pan, emissora que cresceu e tornou-se notável – não mais imprescindível – sob a regência do sempre justo “Seu Tuta”, a quem dedico respeito e enorme admiração. Soa-me incompreensível tomar partido desse ou daquele governante, quando a obrigação primeira da imprensa e dos veículos de comunicação é pautar-se pela verdade dos fatos, sempre à sombra do conjunto legal vigente.
O ser humano não é imune a erros, pelo contrário, até porque essa é prerrogativa dos deuses, mas a atitude de Augusto Nunes é no mínimo reprovável. Nos bastidores do jornalismo nacional impera o entendimento de que a reação do jornalista da Jovem Pan foi absurda, mas a questão é assumir essa posição publicamente. Afinal, como mencionei acima, o corporativismo da classe sempre prevalece em momentos de tensão e polêmicas.
Avesso à violência, seja física ou verbal, meu melhor e maior golpe, muitas vezes certeiro, é deflagrado a partir do cérebro e materializado nos textos aos quais me dedico há algumas décadas. Quanto à munição, já que o Brasil foi transformado em faroeste caboclo, recorro a um tipo cuja letalidade é inquestionável: a coerência. Gostem ou não do que penso, digo e escrevo, não fugirei à crença que o jornalismo para mim representa. E para isso é preciso preservar a coerência e manter o estoque de argumentos.
O entrevero que contrapôs Greenwald e Augusto Nunes é fruto do discurso de ódio e da cizânia que o presidente da República cultiva de maneira obsessiva, como se a campanha presidencial, encerrada em 28 de outubro de 2018, ainda estivesse em marcha e fossem necessárias tantas estultices para convencer o eleitorado. Esse cenário de discórdia e degradação da democracia só avança porque parte da imprensa se sujeita a fazer as vontades dos atuais donos do poder, ignorando que mais adiante a verdade há de apresentar suas faturas.
Durante anos a fio, a esquerda verde-loura, hoje juntos às cordas, atacou-me de maneira irascível sob o argumento de ser eu um falso jornalista pelo simples fato de não ser diplomado. Essa perseguição se deu porque, assim como continua acontecendo, os poderosos de então repudiavam meu jornalismo e temiam seus efeitos colaterais. Em momento algum, até mesmo na mais difícil das situações que esse quadro persecutório proporcionou, reagi com violência ou com ativismo jornalístico. Continuei fazendo jornalismo como sempre fiz: com contundência e responsabilidade, sem apelações de qualquer ordem.
O exercício da coerência é árduo, exige determinação espartana e paciência monástica, situações para as quais os coléricos tempos de hoje não abrem espaço, em especial quando na cena estão os mais afoitos. Sempre lembro aos que de mim se aproximam e elogiam o meu trabalho que “sou o melhor produto dos meus próprios erro”. Traduzindo, aprendi (e continuo aprendendo) com os erros e deles fiz (e continuo fazendo) a plataforma necessária para melhorar como profissional e ser humano. Depois da agressão, Augusto Nunes disse, em entrevista, não se arrepender da própria atitude, alegando que no momento não lhe restou alternativa, que não a agressão física.
Por ironia do destino, Augusto Nunes, ao agredir Greenwald, atentou contra o discurso que proferiu na última terça-feira, 5 de novembro, ao ser premiado em evento organizado pela classe jornalística. Na ocasião, Nunes enfatizou a importância de se respeitar a opinião divergente. “É possível se expressar livremente sem que cheguemos no nível das torcidas organizadas”, disse o jornalista da rádio Jovem Pan.
Existir na seara da coerência é para poucos, em que pese o direito de cada cidadão de escorregar aqui e acolá, mas na condição de formador de opinião ninguém pode usar a radicalização como senha para o contraditório. Ninguém, independentemente da situação, pode agir como membro de torcida organizada.
Árduo, o meu cotidiano como jornalista – sempre dedicado ao País, à população e ao Estado de Direito – não disponibiliza nesgas ao ativismo jornalístico ou ao jornalismo ideológico, como sugerem alguns covardes, pois quem acompanha com regularidade o meu trabalho sabe que critico de forma isonômica a classe política, não importando se no poder está um representante da esquerda ou da direita, seja bandoleira ou xucra.
Para concluir recorro ao grande escritor e poeta português Fernando Pessoa, que em “Hoje Tomei a Decisão de Ser” escreveu com invejável maestria: “Atitude por atitude, melhor a mais nobre, a mais alta e a mais calma. Pose por pose, a pose de ser o que sou. Nada de desafios à plebe, nada de girândolas para o riso ou a raiva dos inferiores. A superioridade não se mascara de palhaço; é de renúncia e de silêncio que se veste”.
Triste Brasil, tempos estranhos!
(*) Ucho Haddad é jornalista político e investigativo, analista e comentarista político, escritor, poeta, palestrante e fotógrafo por devoção.
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