(*) Marli Gonçalves
Cá estou eu, numa nublada e cinzenta São Paulo, e com um dedo imobilizado até o outono. Não era pescoço de cisne o problema que de repente me aconteceu. Chama dedo em martelo, me informou o especialista, mais comum, mas não menos chato e “atrapalhante”. Não apareceu ainda nenhuma moda divertida de verão, nem aqui, nem no Rio de Janeiro, nem em lugar nenhum, e até o Carnaval está mais enrolado que serpentina
Nem estou podendo usar o dedo do meio da mão direita, o conhecido “dedo-do-palavrão”, pai-de-todos, dedo maior. À esta altura em praticamente todos os anos que vivi, e são muitos, logo em janeiro a gente já sabia qual era ou ia ser “a do verão”. Teve, para lembrar alguns, o “da lata”, quando as latas do Solana Star vieram dar alegria às praias, o do “apito” que a moçada usava para alertar sobre a chegada da polícia, o do topless, no qual as garotas liberavam a torturante parte de cima dos biquínis.
Já estamos em pleno fevereiro, o Sol anda mesmo sumido aqui do Sudeste. As chuvas de verão, às quais até já estávamos acostumados, fortes, mas rápidas e refrescantes, só estão trazendo a parte das desgraças, das mortes em desabamentos, deslizamentos, acidentes, e o Estado de Minas Gerais anda premiado. A falta de saneamento básico, o descuido com algo tão importante, vem se mostrando a cada nuvem carregada que desaba.
Nas praias, nos livramos do óleo, ainda inexplicado. Mas no Rio de Janeiro hoje, que anda sem graça, e até sem moda, se perguntarmos qual é a do verão, a resposta será “o da água fedida, turva, contaminada”, o verão da “geosmina” bactéria produzida por algas. Um verão do baixo astral.
Não bastassem os inglórios problemas nacionais, chegou o temor com o novo coronavírus detectado na China, se espalhando e ligando o alerta mundial. A contaminação pessoa a pessoa apavora e se aproxima, inclusive de nosso Carnaval, justamente a época que se canta e dança para exorcizar os demônios anuais, com alegria; o tal ópio do povo.
Verão esquisito esse de 2020 … é o mínimo que se pode falar dele até agora, embora meu otimismo siga até 20 de março junto com as nossas esperanças que até lá melhore esse astral. O que incomoda é lembrar que, pensando bem, desde antes, certa eleição e posterior posse, já passamos por um outro verão, outono, inverno, primavera e todo dia um aborrecimento vindo de algum canto do Brasil nos agoniou. Como um mal que se espalha, uma geosmina comportamental que turva tudo o que encontra. Incentivados por quem imaginam ser líder, os mais estapafúrdios pensamentos saem das cavernas, puxando nossos pés e ânimos, e enquanto estamos acordados. Estamos? Mesmo?
Só para efeito de demonstração das últimas 48 horas anteriores a esse momento em que escrevo. Secretário da Educação de Rondônia permite que se ouse fazer, imaginar, listar 42 obras literárias nacionais e internacionais para censurar, classificando-as como impróprias para crianças e adolescentes. A tempo não foi executado, mas a lista incluía clássicos como Macunaíma, Os Sertões, e sobrou até para Machado de Assis, entre outros bambas.
Quer outra? O novo coordenador da FUNAI no Mato Grosso do Sul, José Magalhães Filho, falou em entrevista sobre a ‘integração do índio à sociedade brasileira’. Disse como funcionaria essa política de “integração”: ‘Nós temos que preparar essa criança, esse indiozinho, essa indiazinha, para frequentar a escola urbana. E assim a namorar com um pretinho, um branquinho. E essa integração vem surgindo automaticamente. Desta forma é que nossa política será implantada’.
Socorro! Chega, né? Tá bom. Não vou nem lembrar da série de sandices disparadas esses dias pelo presidente da República, o general dessa banda desafinada, que tanto atravessa nosso samba na avenida, sacolejando nossa harmonia.
(*) Marli Gonçalves – Jornalista, consultora de comunicação, editora do Site Chumbo Gordo, autora de “Feminismo no Cotidiano – Bom para mulheres. E para homens também”, pela Editora Contexto. À venda nas livrarias e online, pela Editora e pela Amazon.
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