(*) Marli Gonçalves
Amigo é muito mais que coisa para se guardar debaixo de sete chaves, dentro do coração, do lado esquerdo do peito. A palavra amigo está tão desgastada que a gente sai por aí dizendo que tem muitos, milhares, pelas redes sociais. Não é verdade.
Hoje escrevo sobre e para um amigo perdido que, como diz a canção, um dia volto a encontrar, não sei como, não sei onde, e embora ele nunca tenha sido mesmo perdido, simplesmente por morar em mim. Vocês já tiveram um amigo mais do que especial? O meu partiu há exatos 30 anos, 25 de agosto de 1993, e não houve sequer um dia nesse tempo que não tenha pensado nele, acredite. Vou nomear, porque se você aí também o conheceu vai lembrar dele, entender, apoiar o valor que dou a ter podido viver uma parceria assim durante a vida. Chamava-se Edison Dezen, e até no nome já trazia o paraíso, o Éden. O lugar que imaginamos em sonhos para onde vão as pessoas boas.
Quando temos um amigo verdadeiro, aprendi, conseguimos poderes mágicos como a telepatia, a linguagem do olhar; um cúmplice, para o bem e para o mal, em uma relação onde nunca falta apoio, consideração, e até mesmo o perdão. Essa forma de amor sublime, sólida, e até posso estar enganada, mas que vejo mais firme do que qualquer relação amorosa ou sexual.
Sentimos saudade com a ausência, não só por aquele egoísmo básico que muitas vezes faz até com que prendamos o espírito da pessoa, tentando amarrá-la na Terra junto a nós, mesmo quando não há mais chances, mais cura, e que é preciso deixar ir. Dor que já senti depois muitas outras vezes, aprendida duramente com tantas perdas vida afora, e a partir justamente de acompanhar a agonia desse amigo no leito de um hospital. Antes de ir, assim, ainda me ensinou muitas coisas além de lidar melhor com o dia a dia desse ambiente cruel, montanha-russa. Nos corredores, aprendi como algumas famílias podem ser tão desunidas, hostis, desumanas, e como o interesse financeiro pode se sobrepor a qualquer consideração por quem ali está.
Pude ainda, e comemoro ao longo desses anos, trazer comigo pela estrada da vida outras amigas e amigos solidários comuns que tínhamos, e com os quais hoje divido a dor dessa ausência; eles estão espalhados por aí e a sentem, testemunhas de quanto todos nós perdemos, todos, disse e enfatizo, porque Dezen fez muito pelo nosso país também. Do cuidado com São Paulo na Paulistur, hoje chamada SPTuris, nas Campanhas das Diretas Já quando reuniu aquele tanto de seus amigos e artistas admiráveis, como o Bituca Milton Nascimento e outros tantos. No amor dedicado a Elis Regina que fez com que um de seus últimos pedidos a nós fosse ser enterrado perto dela, e ali está, à sombra de um belo suinã e suas flores vermelhas, no Cemitério do Morumbi, pedido que conseguimos cumprir com a união de todos. Entre seus últimos trabalhos geniais está o que fazia com Ayrton Senna que, por coincidência, morto em 94, meses depois, também descansa no mesmo campo santo. Seria preciso muito espaço para fazer uma biografia mínima deste que deu a mão para muitos que estão aí e talvez agora nem se lembrem mais disso, da sua grandiosa generosidade.
Daqui, cuido dos anjos de sua coleção. Lembro dos nossos vira-latas que criávamos livres em Ilhabela, Banzai, o Capitão, e que tantas vezes nos tiraram daqui de São Paulo plena madrugada, correndo a longa estrada, preocupados que estávamos com eles. Recordo agora mesmo das nossas conversas na praia em noites geladas quando avistávamos seres de outros planetas, espíritos de outros tempos. Ou nos divertíamos caçando latas caídas de algum Solana Star.
Hoje eu precisava dedicar e escrever pelo menos um pouco sobre ele, o Amigo, pela data, pela saudade, e porque a cada dia mais – embora tenha muitos amigos e amigas que sei que verdadeiramente gostam de mim – sinto e expresso assim também a enorme falta de outros que se foram, levando pequenos pedacinhos ou grandes momentos. Perdidos em pandemias e epidemias. De alguns que nem sei mais onde andam. De um ou outro que bem sei onde andam, mas não entendo como puderam me esquecer. Dos que até inesperadamente me comprovam que estão por perto, mesmo sem estar; basta que eu peça socorro que se aproximam.
… “quem cantava chorou ao ver o seu amigo partir. Mas quem ficou, no pensamento voou. Com seu canto que o outro lembrou. E quem voou no pensamento ficou. Com a lembrança que o outro cantou… O que importa é ouvir a voz que vem do coração…”
(Dedicado a Edison Dezen e a todos que conhecem o real valor de uma amizade)
(*) Marli Gonçalves – Jornalista, consultora de comunicação, editora do Site Chumbo Gordo, autora de “Feminismo no Cotidiano – Bom para mulheres. E para homens também”, pela Editora Contexto. À venda nas livrarias e online, pela Editora e pela Amazon.
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