(*) Ucho Haddad –
Aos 34 anos, dezoito de carreira, maior artilheiro das Copas, três vezes eleito o melhor jogador do mundo, campeão vestindo a camisa da seleção brasileira e as de alguns dos mais importantes clubes do planeta, Ronaldo Luís Nazário de Lima colocou nesta segunda-feira (14) um ponto final na sua carreira de atleta. Nada de na outra linha, travessão. Ele parou!
Desde que recebi um honroso e inesquecível estímulo do repórter Wanderley Nogueira – ele prefere ser chamado assim -, o maior e mais completo jornalista esportivo do País, para escrever regularmente sobre o esporte e seus quetais, sem perder a verve crítica que desenvolvi ao logo dos anos como comentarista e analista político, sempre mencionei que Ronaldo Nazário foi um jogador acima da média. Para aqueles que entendem a minha maneira de pensar como um ato de intransigência, lembro que estreei nos estádios aos sete anos de idade e lá se vão mais de quatro décadas acompanhando o futebol.
Nesses quarenta e cinco anos tive a chance de contemplar alguns gênios fazendo coisas inacreditáveis com a bola, situações que até hoje a Física não conseguiu explicar. Vi Dadá Maravilha parar no ar, Pelé jogando no gol, Garrincha driblando como ninguém, o Atleta do Século marcando o milésimo gol, Rivelino acariciando a bola com a força de um canhão, Sócrates tocando a redonda com o calcanhar, César Maluco arrebentando na banheira adversária, Félix vestindo a camisa 1 da Portuguesa, Everaldo atuando como um lorde na lateral gremista, Tostão calando o mundo com a sua genialidade, Gerson não querendo levar vantagem em tudo, Paulo Borges voando na ponta corintiana, Zé Maria se eternizando como símbolo da força… Mas paro por aqui para não ser cansativo. Em outras palavras, formei na memória uma confiável referência, formada por uma constelação de futebolistas, que ao longo do tempo me ajudou a manter o equilíbrio emocional diante de resultados – positivos ou negativos – ao mesmo tempo em que me transformou em um exigente contumaz. Confesso que em alguns momentos me rendi à emoção. Chorei, gritei, silenciei, solucei, entristeci. Tudo por causa da bola. Essa combinação de situações me mostrou o caminho para analisar o futebol de maneira fria, sem deixar de compreender a emoção do torcedor. Mas essas coisas do coração e da alma há muito não se manifestam nas reticências do esporte bretão.
Quando Ronaldo Nazário desembarcou no Parque São Jorge, muitos foram as profecias que rondaram a contratação do atleta que tantas alegrias deu aos amantes do futebol. Naquele momento, mais uma vez passei ao largo da emoção irracional que tomou conta da comunidade alvinegra. Depois de retornar à primeira classe do futebol nacional, o Corinthians precisava de um aditivo que desse ao clube glamour e dinheiro. E Ronaldo Nazário foi a solução mais adequada. O grande erro da diretoria foi deixar os torcedores pensarem que Ronaldo seria a solução para tudo aquilo que o Corinthians ainda não havia conquistado em sua história centenária. E nesse sonho estava inclusa a conquista da tão cobiçada Copa Libertadores da América. Uma mentira desmesurada, que acabou camuflada pelos interesses comerciais e financeiros que marcaram a contratação. Tudo bem, pois futebol é 90% negócio e 10% esporte. No vácuo dessa situação, a torcida alvinegra passou a cobrar aquilo que não tinha direito, mas o fez por desconhecer a verdade.
Analisada a relação custo-beneficio da contratação do agora ex-camisa 9, Ronaldo superou as expectativas. Cumpriu o combinado e deu algo mais ao Corinthians, que de uma hora para a outra passou a ser falado nos mais distantes rincões do planeta, até mesmo onde o futebol é algo sem graça. Quem se importou com o sobrepeso de Ronaldo por certo não compreendeu que seu peso maior estava, como ainda está, na capacidade de atrair as atenções e angariar recursos aqui e acolá. Por mais que Ronaldo quisesse ainda jogar quando chegou ao Corinthians, o seu maior e mais rentável drible estava fora das quatro linhas. Foi no mundo dos negócios que Ronaldo marcou o mais belo gol com a camisa do Timão. Entre tantas situações favoráveis que proporcionou ao onze da Zona Leste paulistana, foi ele, Ronaldo, quem direta ou indiretamente permitiu que o alvinegro da Pauliceia Desvairada tivesse um jogador como Roberto Carlos, que em 2010 foi eleito o melhor lateral esquerdo do futebol brasileiro, mas que muitos agradeceram aos céus por sua saída. Loucura de torcedor que tem a consciência tomada pela cegueira.
O brasileiro, independentemente do time do coração, sofre de uma necessidade cada vez maior de ter à disposição um herói de aluguel. Situação típica não apenas da psicose humana, mas de uma sociedade que diuturnamente se alimenta no chorume que decanta dos desmandos dos governantes. Ronaldo, muito mais que uma catalisador de fama e recursos financeiros, serviu para incrementar o sonho impossível de uma torcida que na maioria das vezes ultrapassa os limites máximos do razoável. E quando o sonho se transforma em pesadelo, a reação de um bando de loucos nem sempre é a melhor possível.
Se nos últimos dois anos Ronaldo e o Corinthians tivessem respeitado o acordado e seguido a lógica, jogando de vez em quando, sua estada no clube teria mais alguns bons capítulos extras. Chegaria até o ponto estipulado pelas filigranas contratuais. Mas não, a mentira que ronda a paixão pelo Timão corroeu as possibilidades e antecipou o fim. Entrando duas vezes por mês em campo com a camisa do Corinthians, no máximo, Ronaldo seria extremamente útil ao clube e aos seus sempre sedentos cofres. Além de embolsar o dinheiro que merece e fazer a alegria dos patrocinadores.
Ronaldo é uma máquina de fazer dinheiro. Até mesmo nos momentos mais difíceis e polêmicos que enfrentou, com direito a especulações pífias por parte da mídia sensacionalista, seus patrocinadores não arredaram o pé. Tanto é verdade, que ao iniciar sua fala de despedida o jogador fez questão de mencionar o nome de cada um de seus patrocinadores, alguns deles presentes desde o início da sua carreira como atleta profissional.
Esperada, a aposentadoria do jogador foi abreviada pelo comportamento insano e violento da torcida, que abusou da selvageria após o alvinegro ser eliminado da Libertadores. Ronaldo tem uma história de sucesso e conquistas que não pode ser apedrejada pela fúria de um gueto de torcedores, vez por outra contratado para garantir o status quo da cartolagem. E ele acertou ao preservar o próprio currículo e descer de um bonde momentaneamente desgovernado chamado Corinthians. Ao falar da agradável surpresa que foi jogar em um dos mais populares clubes do País, Ronaldo fez questão de destacar o papel da torcida, que mereceu do jogador adjetivos como “empolgante” e “apaixonada”. No contraponto, o maior ídolo da história centenária do Corinthians lembrou que “em algumas vezes essa torcida é um pouco agressiva, um pouco fora de controle”. Claro, as torcidas só agem assim porque os diretores dos grandes clubes financiam com muita antecedência esse espetáculo de fazer inveja a Sodoma e Gomorra.
Pois bem, a declaração de Ronaldo sobre o conhecido descontrole da torcida corintiana atira ao rés do chão o discurso do presidente do clube, Andrés Navarro Sánchez, que há dias disse também ter recebido ameaças e que o Corinthians garante a segurança dos jogadores dentro dos limites físicos do clube, cabendo ao Estado a responsabilidade por tudo o que acontece além das fronteiras do Parque São Jorge. Sánchez pode e deve se defender, mas é sabido que o convívio entre torcidas organizadas e diretorias de clube de futebol é uma receita que revela seu viés explosivo nos capítulos finais. Ademais, as torcidas organizadas se transformaram em trincheiras da impunidade para criminosos conhecidos.
Ronaldo agradeceu aos críticos que permitiram o seu crescimento. Nesse rol me incluo sem problema algum, pois se critiquei o jogador em vários momentos, em outros poucos soube enaltecer a sua competência como atleta. No dia em que um dos grandes nomes da história do futebol mundial se despede dos gramados, cabe-me a obrigação de exercitar a coerência que tanto conclamo e admitir que Ronaldo é um ser humano sem precedentes e em constante evolução. Mesmo tendo colecionado um sem fim de acertos, o jogador soube transformar-se no melhor produto de seus próprios erros. E isso é uma atitude louvável, especialmente porque Ronaldo admitiu tal com humildade tão impressionante quanto contagiante. Só errou ao pedir desculpas pelo fracasso do clube na Libertadores, pois essa jamais foi uma responsabilidade sua.
Nas páginas de um clube centenário muitos são os ídolos que escrevem uma história de tradições e glórias mil, mas Ronaldo não apenas ganha lugar de destaque nesse livro chamado Corinthians, mas concede ao Timão, com alguns minutos de adeus, mais cem anos para que o clube encontre a trilha da verdade.