(*) José Nêumanne Pinto
Lula adota na política o ‘sou, mas quem não é?’ do cafajeste Tavares
A notícia de que aliados do presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP), estocam munição para atacar os oposicionistas e, com isso, reduzir a pressão do noticiário de escândalos do Senado dá ideia do ponto a que a luta política leva os homens públicos no Brasil, mas se apoia em lógica plana. Foi-se o tempo em que o Partido dos Trabalhadores (PT) e seu constante candidato à Presidência da República buscavam diferenciar-se dos adversários para chegar ao poder pela distinção de seu estofo do do restante dos colegas. Sua aliança com a velha elite dirigente dos mandachuvas regionais (Jader Barbalho, José Sarney e tantos outros) e o baixo clero mais rastaquera (que tem em Severino Cavalcanti seu pontífice) os levou a mudar o tom do discurso político. E a delação do “mensalão” pelo ex-aliado Roberto Jefferson forçou-os a virar o discurso pelo avesso: “Eles não são diferentes de nós, somos farinha do mesmo saco” – eis seu lema oculto.
A vitória eleitoral em 2006 levou Luiz Inácio Lula da Silva e toda a sua corte de áulicos a investirem cada vez mais na tática genialmente definida pelo cafajeste Tavares, personagem imortal do humorista Chico Anysio, que consagrou o bordão: “Sou, mas quem não é?” Ou seja, “meus pecados deverão ser perdoados, pois também são podres os dedos de todos quantos nos delatam”. O feito inédito e espetacular de atingir índices estratosféricos de popularidade no segundo mandato, que normalmente conduz ao purgatório da execração e, depois, ao ostracismo (vide Fernando Henrique e Carlos Menem, dois exemplos recentes), fez com que o presidente imaginasse que os milhões de votos somados a porcentuais crescentes de prestígio popular lhe dão o condão da inimputabilidade transferível. Ou seja, ele passaria não apenas a merecer indulgência plenária por todos os pecados que viesse a cometer – incluindo os mais graves –, mas também a poder ungir com o dom seus amigos de fé, seus irmãos, companheiros. Por isso, saiu pelo País distribuindo essa unção a aliados de última hora cujos pecados foram remidos pelos serviços prestados ao governo que redime os pobres brasileiros de séculos de miséria e opróbrio.
Noço guia genial obra diariamente, mercê de sua notória capacidade de falar a língua de flagelados da terra seca e favelados da periferia das urbes, o milagre da transposição da redenção, distribuindo-a aos companheiros de jornada e negando-a a renegados. Cultor da lógica simplista da metáfora do ludopédio, Sua Excelência abusa de forma absurda do truísmo. Ao aceitar o convite para participar de um ágape frequentado por tiranetes africanos em Trípoli, recorreu a uma duvidosa norma social – ninguém pergunta quais são os outros convidados de uma festa à qual comparece – para negar a obviedade mais ululante de que ninguém é obrigado a dizer sim a todos os convites que lhe são dirigidos. E fingiu desconhecer a evidência de que nenhum chefe de Estado frequenta ambientes que não sejam antes devassados por seus batedores e diplomatas. Foi essa crença na própria capacidade de manipular a ignorância alheia (de mais de uma centena de milhões de patrícios) que o levou a apostar todo o seu cacife em lances de jogadores para os quais a definição de suspeitos chega a ser elogiosa e cuja disposição para os deveres cívicos inexiste.
Com a prática de anos de investimento na demolição da reputação alheia, Lula deve saber melhor que ninguém que a fonte da divulgação dos escândalos na administração do Senado fica a uma distância lunar dos adversários da oposição. É mais provável que ela jorre nos jardins dos companheiros derrotados na disputa pela presidência da Casa. Quando atribuiu ao PSDB e ao DEM a vontade de ganhar o jogo no “tapetão”, não estava fazendo um diagnóstico, mas prolatando uma sentença dirigida principalmente aos próprios correligionários. Como se diz no interior de Pernambuco, de onde ele saiu em tenra idade, para o burro entender basta bater na cangalha. Sua Excelência aposta na incompetência dos oposicionistas e na cega adesão dos governistas.
Do líder de seu partido no Senado, Aloízio Mercadante (PT-SP), não surpreende a pusilanimidade de sugerir uma licença de 30 dias para José Sarney na véspera e, no dia seguinte, assumir o comando da luta pela permanência do presidente da Casa em seu assento, mas, sim, a incapacidade de perceber o óbvio. Até os peixes do espelho d’água do Planalto sabem que Lula precisa do grupo de Sarney para continuar fazendo o que bem entende no Congresso e, sobretudo, para ajudar a carregar o poste Dilma Rousseff ao longo de uma exaustiva e complicada campanha eleitoral presidencial. O que pode, então, ter dado ao professor Mercadante a ilusão da autonomia que ele não tem, nunca teve nem jamais terá? Muito mais esperto, Eduardo Suplicy (PT-SP) sabe que pode bancar o independente, pois essa imagem é útil ao partido e Lula aposta que, na hora de a onça beber água, ele será o primeiro a evitar que alguma ovelha afoita impeça sua chegada ao rio. Suplicy só pede a renúncia de Sarney porque tem a certeza de que nem este renunciará nem ele será obrigado a votar por seu afastamento – não porque não se disponha a isso, mas porque essa votação nunca vai ocorrer.
A escolha da estratégia de defesa de Sarney – a crise não é da pessoa do velho patriarca, mas, sim, da instituição – revela, no fim das contas, a causa da luta pela manutenção do status quo no Senado e também a justificativa de Lula para exercer as funções – que se atribuiu no poder – de perdoador-geral dos amigos e carrasco-mor dos inimigos. O raciocínio é simplista: “se a culpa é de todos e é impossível punir todos, pois seria o fim do Estado Democrático de Direito, vamos manter os companheiros no céu e os adversários no purgatório da distância do poder”. O resto é papo furado.