“Crack: o barulho de nossos restos humanos”

    (*) Marli Gonçalves

    Assustador ver hordas de jovens sem cara, sem destino, molambos humanos. Seus rostos são indefinidos como filmes de ficção e eles se arrastam pelas ruas expondo antes de tudo as nossas mazelas. E há ainda os velhos, os doidos, os desiludidos…<

    O videoclipe de Thriller talvez tenha sido apenas mais uma antevisão de futuro do maluquinho que não queria ser negro, nem ter nariz achatado, nem crescer. Aqueles personagens que ali ainda conseguiam dançar são de verdade e andam hoje pelas ruas de todo o mundo, apenas loucos, literalmente, pelos seus próprios fins. São magros, esquálidos, sujos, e os rostos movimentam apenas um infinito de esgares, como se a câmera do olhar estivesse fora de foco para mostrá-los nas tevês, sempre anônimos, mortos-vivos, pesos-mortos. Perigosos porque insanos, porque doentes, porque viciados. Andam em grupos, tenebrosos, cobertos por mantas de lã, sem a graça do Linus, o inseguro personagem de Charles Schulz. Não é o dedo que eles põem na boca, mas cachimbos infectos.

    As grandes cidades os mastigam e cospem. Maldita droga, que não cria, não dá, só tira e mata.

    Lembro desde muito jovem ouvir falar horrores daquelas praças européias onde as drogas – e eram outras drogas – eram livres, as seringas ofertadas, e os guetos uma única forma de contê-los. Berlin Alexanderplatz, a mais famosa delas. Ali a saúde pública atuava; ali faziam sexo, ali viviam entre as árvores. Controlados. O que houve? Abriram os portões como querem fazer também na luta antimanicomial? Eles se espalharam, junto com essas drogas mais letais, mais baratas, pior que a naftalina das baratas cascudas, pior do que se apenas tomassem água suja no leito das calçadas. E se multiplicam, não mais apenas pobres, mas todos apenas lixos urbanos, humanos não-descartáveis, não-recicláveis. E em países como o nosso, onde certas coisas parecem não ter qualquer importância; a dignidade, apenas uma delas.

    É um confronto difícil e violento sair todo dia às ruas, pior ainda quando se vive numa megalópole como São Paulo, e pouco se pode fazer. Você dá de cara com crianças vivazes obrigadas a mendigar pelos pais alcoólatras ou viciados. Dá de cara com gente velha, muito velha, com fome, doente, feridas pelo corpo, letreiros no pescoço, muitas vezes mutilados de uma guerra apenas quixotesca. Nas esquinas, nas pontes e postes, dentro de caixas, atrás de muros, junto com os ratos, ficam ali jogados os pacotes de lixo-gente. Aprendem e sobrevivem com seus vira-latas. O que fazer?

    Em São Paulo tem havido muito boa vontade e atenção, mas ainda não se consegue a base mínima de um trabalho coordenado, completo, que una saúde pública, assistência social, caridade, segurança e perspectiva, inclusive emocional. Temos pessoas capazes, realmente preocupadas, dedicadas. Deixem-as trabalhar. Elas também precisam ser fortes para não desistir de fazer, de ajudar. Todos precisam apoiar todos; todos por qualquer um.

    A liberdade individual, a possibilidade de escolha, existe, mas ambas têm, sim, limites. Não adianta pegá-los, esses desgraçados, dar banho, lavar, secar, botar para coar, enfiar comida em suas bocas. Dar entrevistas. Dois minutos depois, em abstinência, eles voltam. Não adianta apenas empurrá-los de lá para cá e de cá para lá: agora estão cada vez mais perto da sociedade, onde são mais danosos. São como garrafas pet que levam anos para se desintegrar na natureza e enquanto isso vão causando estragos, neles e em outros que vêm chegando, já que desconsolo e miséria não são perenes.

    Os crackeiros agora também chegaram ao Rio de Janeiro e lá já estão fazendo com que a Cidade Maravilhosa veja mais todo esse horror, a que já assistiam em outras facetas de um jogo perigoso, mundial, que faz fortunas e cria lixos. E ainda temos de nos preocupar com as bombas da Coréia, com o Irã, com o desmatamento da Amazônia. Com senadores cabeludos e bigodudos. Com ministros estapafúrdios, com deputados, com banqueiros. E com os impostos do dia-a-dia, sem feriados.

    Há de se falar em vida. Há de se falar em ecologia. Em ecologia urbana, nossos ares, os sons que ouvimos, a terra que plantamos. E em ecologia humana, nossos filhos, essa gente; nos velhos que não ficam para semente. Mas pergunto: como fazer? Não se pode obrigar ninguém a nada. Ou pode? O que a Justiça pode fazer? Como a lei pode existir em um lugar onde pessoas mais velhas pagam mais nos seus seguros por terem conseguido viver mais um ano de vida? Como fazer para mudar uma política burra e populista que está aumentando a natalidade com bolsas-família, em nome de um socialismo de fachada, gastando milhões em propaganda para fazer você acreditar no que não vê? Na política antiga que aumenta a poluição e a loucura por achar que mais carros significa mais progresso? Como fazer para substituir o imediatismo de ações bombásticas, feitas para virar nossos pescoços para outros lados?

    Por essas e outras temos tantos torcicolos, tantas dores lombares. Nossos ossos estão cansados. Nossas gargantas estão secas e roucas, que a voz da rua é de quem grita mais. Nossa pele absorve tudo e o cheiro é forte. No entanto, os olhos, por mais marejados e ardidos como se areia ali entrasse, não podem se fechar. Nem por um segundo. A não ser que seja para morrermos de vez. Os ouvidos precisam escutar, para que não continuemos apenas a empurrar com a barriga.

    São Paulo, centro dos nóias, paranóias e outras questões, 2009

    Marli Gonçalves é jornalista, muito boazinha, até demais, mas desde que não lhe pisem os calos. Se tivesse mais condições, seria voluntária nessas missões sem fronteiras. Mas faz guarda diária e diretamente dos seus pontos de observar os horizontes e sempre bateu nessas teclas.