Sinal de alerta – Diretor-médico do Centro de Assistência Toxicológica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (CEATOX), médico assistente do Instituto da Criança e assessor da Organização Mundial de Saúde (OMS), Anthony Wong é uma das maiores autoridades brasileiras em toxicologia. Em entrevista ao site do Centro de Informações sobre Saúde e Álcool, Wong falou sobre o consumo de álcool por crianças e adolescentes, algo que vem crescendo assustadoramente no Brasil e que levou o governo paulista a adotar lei que pune os donos de estabelecimentos comerciais que vendem bebidas alcoólicas a menores de idade.
Anthony Wong destacou também o perigo do cocaetileno, substância formada no fígado a partir da metabolização do álcool com a cocaína. Os efeitos do cocaetileno são mais longos e duradouros que a cocaína utilizada isoladamente. Altamente tóxico para o miocárdio, o cocaetileno pode provocar morte súbita.
Quais as demandas que o CEATOX recebe com relação ao uso de álcool por crianças e adolescentes?
As intoxicações causadas pelo uso de álcool estão entre as principais causas de notificações de acidentes. Das mais de mil substâncias que possuem potencial para causar intoxicações graves e que necessitam atendimento de emergência, o álcool está entre as 20 primeiras. No período de férias escolares este quadro se agrava ainda mais e o álcool passa a assumir importância maior ficando entre as 10 principais substâncias.
Em geral, nosso serviço é utilizado por profissionais de saúde de hospitais e serviços de emergência. Como a intoxicação aguda por uso de álcool é um quadro muito comum, na verdade é a principal razão pela procura de serviços de emergência, o manejo destes casos é rotineiro e os médicos possuem conhecimento adequado para lidar com estes situações. Eles nos procuram quando se deparam com casos graves de intoxicação por álcool, particularmente quando este foi utilizado concomitantemente com medicamentos ou substâncias ilícitas. Neste sentido, é comum recebermos consultas sobre procedimentos de emergência em casos graves em que o álcool foi misturado com anfetaminas, benzodiazepínicos, maconha, ecstasy, metanfetaminas e, principalmente, cocaína.
Quais situações de consumo de álcool são as mais perigosas para as crianças e os adolescentes e quais os principais riscos envolvidos?
A ingestão de álcool por crianças e adolescentes é problemática em qualquer situação. Isto é um consenso internacional, tanto que em todos os paises do mundo existem leis que determinam a idade mínima para aquisição de bebidas alcoólicas. Na Europa e nos EUA, por exemplo, esta idade é de 21 anos.
O álcool é a única substância que conhecemos que é tóxica para todas a células do corpo. É importante lembrar que o adolescente é um ser em formação, ou seja, todos os órgãos estão em processo de desenvolvimento, principalmente, o sistema nervoso. O álcool, se consumido em excesso, prejudica principalmente a capacidade enzimática destas células, a transmissão de impulsos nervosos e a integridade celular, conseqüentemente, suas seqüelas poderão ser duradouras.
O que se tem percebido é que quanto mais jovem for a pessoa que consome bebidas alcoólicas, maior o risco e o agravo celular. Uma situação de risco muito comum entre os jovens é a mistura de bebidas, pois sem que ele perceba acaba por aumentar a concentração e a quantidade de álcool consumido. Outras situações de grande risco são quando o jovem consome o álcool juntamente com outras substâncias psicoativas. A maconha é um caso típico, principalmente porque ela é muito popular entre os jovens. Como tanto o álcool como a maconha possuem efeitos depressores sobre o sistema nervoso central, o que acontece é que o efeito de uma se soma ao efeito da outra, constituindo, por vezes, quadros perigosos que necessitam intervenção médica emergencial.
O consumo de álcool juntamente com a cocaína também é uma outra situação que produz danos importantes para as pessoas. A partir da interação destas duas drogas, o fígado produz o cocaetileno, uma substância extremamente tóxica. As pesquisas mostram que esta substância é 17 vezes mais tóxica do que o uso exclusivo da cocaína ou do álcool. Esta interação é umas das principais causas de morte súbita entre os usuários das drogas, como infarto do miocárdio e arritmias cardíacas graves.
Há também os casos de mistura de álcool com opióides e benzodiazepínicos, nestas situações os riscos mais graves são a adição de efeitos depressores, o que pode causar quadros graves de apnéia. Mais recentemente, tem-se observado que os jovens têm misturado as bebidas alcoólicas com o ecstasy. Neste caso, os maiores riscos são para os níveis de hidratação. Como tanto o álcool como o ecstasy aumentam a perda da água do corpo, quando consumidos em associação, os riscos são maiores. Além de o álcool potencializar também as propriedades alucinogênicas do ecstasy, aumenta o risco e a intensidade da rabdomiólise, complicação que provoca a destruição irreversível das fibras musculares esqueléticas e do coração e que é agravada nos estados de desidratação e calor.
Como os pais devem agir para prevenir ou resolver situações emergenciais de consumo prejudicial de bebidas alcoólicas por seus filhos?
Neste ponto eu gosto de usar uma frase um pouco forte, mas que está de acordo com a seriedade do problema: Toda gestante que bebe deveria ser considerada traficante de drogas. Porque ela está provocando danos extremamente sérios no seu feto. Ou seja, os pais possuem enorme responsabilidade na prevenção do uso e dos problemas decorrentes de álcool por suas crianças e adolescentes. A maioria dos jovens que bebem têm o exemplo dos pais, bem como sua tolerância. Isso ocorre de várias maneiras, não é incomum encontrarmos pais que oferecem bebidas alcoólicas para seus filhos, ou permitem que estes bebam em festas e ocasiões sociais, mesmo em quantidades pequenas. Por exemplo, recebemos no hospital uma criança de três anos em coma alcoólico e risco de vida que havia se embriagado num churrasco colocando o dedinho na caipirinha dos adultos e depois na boca. Alguns pais se omitem de suas responsabilidades e acabam colaborando para a exposição de seus filhos a riscos. Outro caso que considero grave é a disponibilização de bebidas alcoólicas em festas de escolas. Tive a oportunidade de verificar em festas de escolas tradicionais de São Paulo que os adolescentes tinham acesso livre a bebidas alcoólicas. Aliás, a diversão de muitos adolescentes, de ambos os sexos, é unicamente tomar um porre. Se isto ocorresse nos EUA, o adulto anfitrião responsável pela festa seria preso, pois estaria incorrendo num crime que é o de fornecer bebidas alcoólicas para menores de idade.
Portanto, os pais devem se informar e informar seus filhos e ao mesmo tempo colocar os limites. Não existe justificativa para o consumo de álcool por crianças e adolescentes, e o exemplo dos pais é essencial.
Falei da prevenção, vou falar agora das situações de intoxicação. A regra deve ser tratar toda situação de intoxicação como uma emergência médica. O pai deve procurar um serviço de emergência, pois não dá para saber se seu filho consumiu somente o álcool ou outras substâncias. Às vezes nem os jovens sabem o que tomaram junto com sua bebida, mesmo não-alcoólica. Hoje em dia, ocorrem corriqueiramente casos de pessoas que vão a festas e que bebem, sem saber, bebidas misturadas à substâncias que provocam sono, perda de memória e mesmo a morte por problemas respiratórios. As substâncias mais comuns que vêm sendo utilizadas são: flunitrazepam (Rohypnol®), diazepam, midazolam, ketamina, GHB e a escopolamina. São drogas que vêm sendo utilizadas no que se tem chamado de (golpe da boa noite Cinderela) e, em geral, são aplicados para a realização de furtos, roubos e abuso sexual. A pessoa não se lembra do que ocorreu, mas fica extremamente passiva e sem condições de reagir. O flunitrazepam provoca sono profundo. Recebemos o caso de um jovem que dormiu por três dias seguidos.
Só foi salvo porque os amigos sentiram a falta dele no trabalho e arrombaram a porta da sua casa para levá-lo para o hospital. O GHB pode provocar desmaios e perda da memória, além de morte, e, nos EUA, tem sido a droga mais utilizada em casos de estupro. O Super K é um anestésico não-opióide, quando transformado em pó e aspirado causa também perda da consciência e parada respiratória. A escopolamina é extraída de plantas como a saia branca e causa também a perda da consciência sem a perda da capacidade motora. O trihexfenidil (Artane®), muito utilizado em São Paulo, é uma medicação para o mal de Parkinson que provoca alucinações e agitação violenta. A benzidamida, um antiinflamatório, também provoca alucinações intensas, além de hemorragias. E o álcool potencializa todos estes efeitos, constituindo-se num grande risco.
Quais suas sugestões para melhorar as políticas públicas brasileiras nas áreas de farmacovigilância e intoxicações ligadas ao consumo de álcool por crianças e adolescentes?
Simples: aplicar a lei e orientar os pais e os donos de estabelecimentos comerciais, impondo as penalidades cabíveis e já explicitadas no Código da Infância e da Adolescência, que é de prisão por seis meses e multa.
Exemplos bem sucedidos do que eu estou falando são o da Europa onde se reduziu tremendamente o número de acidentes com automóvel através da adoção de políticas mais rigorosas para o nível de álcool no sangue permitido para motoristas de automotores. Lá o limite é 0,02 g/dL, no Brasil é 0,06 g/dL. Em nosso país existe um projeto de reduzir este limite para 0,03 g/dL, mas que não é votado por pressão da indústria de bebidas. Para menores de idade a tolerância na Europa é zero. Nos EUA o consumo de álcool entre adolescentes caiu 22% segundo a última pesquisa Monitoring the Future. A lei passou a ser aplicada. Vários bares têm sido fechados e se você vai a um bar e pede uma bebida, salvo casos quando obviamente se trata de um adulto, realmente eles pedem o documento de identidades antes de servir. Vender bebidas e cigarros para menor de idade dá multa e prisão, e toda a sociedade deve auxiliar na fiscalização.
Em nosso país temos uma cultura permissiva e hipócrita com relação ao uso de álcool e outras drogas. A lei é para os outros. Temos que orientar os pais para que tenham uma atitude mais pró-ativa, senão nada irá funcionar em nossa sociedade para prevenir o uso de álcool e drogas pelos jovens. A família é a primeira e principal barreira, se ela falhar, fica tudo mais difícil.