Pavio aceso – A Turquia é palco de uma onda de protestos sem precedentes há quase uma semana. Até esta quinta-feira (6), as manifestações tiveram três mortes e mais de 4 mil feridos como resultado em dezenas de cidades do país.
Os protestos, iniciados espontaneamente por ativistas que tentavam evitar o fechamento do parque Gezi, em Istambul, já não tratam mais das árvores que o governo quer substituir pela reconstrução de um quartel militar histórico que funcionaria como centro comercial.
A maioria dos manifestantes deixa bem claro que quer a renúncia do primeiro-ministro Recep Tayyip Erdogan, há dez anos no poder. No início da semana, Erdogan descartou cancelar um deslocamento ao norte da África. “Quando eu voltar [na quinta-feira], esses problemas estarão resolvidos”, disse o primeiro-ministro turco na segunda-feira, quando esteve no Marrocos. Erdogan também afirmou que não vai renunciar ao projeto do centro comercial. Segundo ele, sete estrangeiros teriam sido presos no âmbito dos protestos.
O AKP, partido islâmico-conservador do premiê, venceu com folga as eleições por duas vezes seguidas. Há vários anos, a popularidade de Erdogan parecia inabalada, e o país aparentava estar em boa situação graças à economia próspera.
Os confrontos dos últimos dias entre manifestantes e a polícia, que reagiu aos protestos com jatos d’água e gás lacrimogêneo, foram as primeiras manifestações contra Erdogan com dimensão tão violenta. Mas não chegam a ser surpresa, segundo o jornalista e escritor turco Cengiz Aktar. “O governo dá a impressão de que tudo está sob controle e que tudo anda bem. Mas, na realidade, nada estava em ordem”, avalia Aktar.
Erdogan, e não o AKP, é o alvo
O jornalista explica que, observando os slogans utilizados pelos manifestantes, é possível notar que o alvo é apenas o primeiro-ministro turco, e não o seu partido ou o governo em geral. “Ele interfere na vida particular das pessoas. Um exemplo é a proibição de usar batom para as comissárias de bordo, ou então o veto a bebidas alcoólicas após as 22 horas. Isso tudo contraria o estilo de vida laico dos turcos“, afirma.
Para Aktar, as leis e regulamentações impostas à população não costumavam ser notadas. “Mas quando as pessoas viram que essas novas regras seriam de fato postas em prática, começaram a entender o que de fato elas representam”, acrescenta o jornalista.
As tentativas do primeiro-ministro de reorganizar as estruturas sociais, assim como o seu estilo autoritário de governar – sendo o único a tomar as decisões no país – são os maiores motivos dos protestos, explica o escritor de 58 anos. Aktar acredita que a raiva acumulada precisava apenas de um motivo “simples” como o das árvores no parque Gezi para se manifestar.
Movimento jovem e imparcial
Para Gencer Özcan, diretor da faculdade de Ciências Políticas da Universidade Bilgi em Istambul, a revolta da população começou já no feriado de 1º de Maio, Dia do Trabalho. “O governo proibiu uma manifestação na Praça Taksim, em Istambul, um evento simbólico para o movimento político de esquerda. O transporte público foi paralisado pelas autoridades em toda a cidade. Já naquela ocasião, a polícia agiu com violência contra os participantes”.
Nos últimos dias as manifestações continuaram. O primeiro-ministro criticou os protestos e os manifestantes, chamando-os de “saqueadores”. Para Erdogan, os protestos seriam liderados por grupos extremistas.
Mas o jornalista Cengiz Aktar contradiz a versão do primeiro-ministro. “Trata-se de um movimento jovem, imparcial, sem agenda política e sem líderes”, afirmou. “Os grupos esquerdistas clássicos estão presentes como sempre, mas não representam nada”, afirma o jornalista, a respeito das numerosas bandeiras socialistas, comunistas e dos curdos que vêm aparecendo durante as manifestações. “Nenhum movimento político, partido ou indivíduo conseguiria manipular a população na Praça Taskim, no parque Gezi ou nas outras cidades do país”, acredita Aktar.
O professor Gencer Özcan também vê a participação maciça da população como uma manifestação composta por uma grande variedade de grupos – incluindo associações radicais. “Mas a coluna vertebral dos protestos é formada por jovens que tomaram as ruas para lutar por seus direitos”.
Nem todos querem a renúncia de Erdogan
Os partidos de oposição hesitaram em participar das manifestações, afirma Özcan. “De início, o partido curdo BDP não se envolveu oficialmente nos protestos das ruas por achar que sua participação poderia gerar distúrbios em geral, mas também no processo de paz com os turcos”, explica o especialista, lembrando o conflito entre turcos e separatistas curdos representados especialmente pelo PKK, Partido dos Trabalhadores do Curdistão.
Também os apoiadores do partido nacionalista MHP foram proibidos pela liderança do BDP de ir às ruas. O mesmo ocorreu com o CHP, o Partido Popular Republicano, o maior partido de oposição da Turquia, cujos apoiadores teriam participado apenas individualmente dos protestos.
Os slogans, assim como as pichações nos muros, pontos de ônibus e nas ruas de diversas cidades da Turquia refletem o descontentamento da população. A frase Tayyip istifa! – “Renuncie Tayyip!” – pode ser lida e ouvida por todo lado.
Mas nem todos querem a saída do primeiro-ministro, explica Özcan. Ainda assim, seria um objetivo comum a longo prazo. “Os protestos são contra o autoritarismo do governo. O objetivo é mostrar a Erdogan que ele não pode fazer o que bem entender e impor sua vontade à população.”
Por outro lado, para os especialistas, principalmente os curdos estariam hesitando em assumir uma posição contra o chefe do governo. “Se Erdogan renunciar, não será nada bom para os curdos. A Turquia está bem no meio de um processo de paz com eles. Se o governo mudar, o país poderá entrar numa era de instabilidade e o processo volta à estaca zero”, diz o manifestante Erhan Calahan, membro do partido BDP.
Novo quadro político
O jornalista Aktar afirma que um dos maiores problemas na Turquia é a falta de uma oposição forte ao AKP – que poderia continuar no poder mesmo após uma eventual renúncia de Erdogan. “Um desdobramento positivo dessa situação [de protestos] poderia ser uma nova disposição do quadro político”, afirma.
Aktar ressalta que o governo turco está sendo forçado a perceber de uma vez por todas que a democracia “não é algo que se possa ligar e desligar. A democracia vive, funciona e se expressa. Isso é democracia participativa – algo que eles [o governo] obviamente nunca aprenderam”, critica Aktar, dizendo esperar que o quadro mude com os protestos. (Deutsche Welle)