Esmolas emocionais e outros trocos

    Marli Gonçalves

    Entende que elas existem, e, o que é pior, às vezes nos contentamos com elas, por mais miseráveis que sejam?

    Senhor, me dê um olhar. Uma atenção. Senhora, deixe-me tentar lhe agradar. Patrão, viu que fiz tudo direito? Papai, adivinha o que consegui fazer hoje! Mamãe, você acha que sou bonita? Não sabemos durante toda a nossa vida mais o que fazer, desde que nascemos, senão pedir pequenas esmolas, suplicar olhares mais atentos, ouvidos generosos. Esmolas emocionais. Pequenas esmolas. Pequenas atenções. Leves afagos para ir levando a vida. Abana o rabo aqui, dá a patinha, se finge de morto, senta, deita.

    Cansei delas, das tais esmolas emocionais, aos 50. Não as evitarei, decerto. Mas não sairei mais mendigando por elas. Nós temos o nosso valor. Algum. Todos têm um valor. Farei como os músicos e malabaristas de rua que deixam o chapéu virado ali por perto. Quem quiser colaborar, que o faça. Que atirem algumas moedas, que deixem impressões, pensamentos. O que valem essas esmolas a não ser existir apenas como pequenas concessões e comiserações que alguém “generosamente” lhe oferta?

    As coisas andam complicadas, principalmente os relacionamentos. Se amorosos, viram armadilhas, onde sempre alguém sai com um pedaço amputado, se sair com vida. Se profissionais, são levados na barriga, nas coxas, e em uma falta de educação mortal, que tem primado apenas em se aprimorar, coisa ruim. Quando familiares, os relacionamentos parecem guerras nucleares, brincadeiras bélicas, jogos de War, lados contra lados, até que um deles se rompa, ou rompa com todos.

    Para completar, como ano após ano, está começando a se aproximar aquela data maldita que alguém inventou e se deu bem. A data pegou e ela pode deprimir, deixar muito mais triste do que o Natal, tem maior poder de destruição. O que é? O que é?

    Acertou! Dia dos Namorados! Urghhhh!!!! Andei vendo passeatas de pessoas sozinhas querendo arrumar uma “canga”, uma tranqueira qualquer para passar esse dia pelo menos em alguma companhia. Tinha de tudo, gente jovem, bonita, se divertindo, e gente mais vivida tentando pescar alguém no riozinho da vida, no lago seco, junto da marolinha. Passeatas patrocinadas por um site de relacionamentos, que costuma “percentualizar” interesses comuns, o que só pode dar uma grande bobagem e terrenos para encrencas. Você responde a algumas perguntas e eles dizem, juram, que encontram seu outro par de meias, a tampa da sua panela, o pé do seu chinelo. Aí te oferecem 78% de afinidade tal, 54% de afinidade tal, inclusive sexual, e assim por diante. Juro: ainda tem quem acredite até que Matemática funciona numa hora dessas, ignorando a importância da Geografia, do Português, da História, e outras matérias básicas.

    Fora a sorte, necessária para quem se arrisca a jogar na loteria.

    Sempre (mesmo quando acompanhada) tive certo enjôo com esse dia, onde a falsidade fica solta, os lugares se enchem de gente bonitinha, arrumadinha, vestida igual quando vai para a igreja, de mãozinha dada, gastando seus trocos, os carapicuás, em restaurantes e motéis lotados. Dia de fazer amor. Antes, invasões por todos os poros de corações vermelhos e mensagens edificantes – e o coitado do São Valentim, lá do dia 14 de fevereiro, nem passa perto dessa festa brasileira.

    No dia seguinte, tudo volta aos eixos. Ou melhor, quem sofreu até ali, pega é o coitado do Santo Antonio, para pagar a desforra. Amarra, afoga, cega, embrulha, põe o careca de cabeça pra baixo. Simpatias de Santo Antonio. Só correndo para tomar quentão – sem duplo sentido, por favor!

    Assim estamos, novamente, sempre, atrás – me digam se estou errada – das tais esmolas emocionais. Que chegam em muchochos, embrulhinhos, sacolinhas, sempre com poucas jóias, pouca sinceridade, e muitas evasivas. Como tudo está muito confuso e o esporte parece vale-tudo, as pessoas se subestimam entre si. E isso é imperdoável, e está listado entre os itens que considero mesmo como totalmente imperdoáveis. Quer manter minha fidelidade, quase canina? Não me subestime, nem subestime minha inteligência. Se pegar em flagrante é o fim. Há concessões, mas elas têm limites.

    Pequenas mentiras, graças contidas, carinhos esquivos, insensata falta de sinceridade. Fingimentos. Tudo bem, se estiver bom para ambas as partes, como dizia aquele deputado apresentador. Sem essa de esperteza, de um lado só. Esmola deve ao menos ser visível, tinir quando cai sobre as outras, e que engana cegos. Abraços e beijos não podem ser implorados, muito menos reconhecimentos. Tenho pensado sobre isso, depois de ouvir e ler depoimentos do grupo Mada (Mulheres que Amam demais Anônimas), depois de ler o livro “Eu que amo tanto”, da genial Marília Gabriela, treze desses depoimentos colhidos com sutileza pela autora, como todas nós, sempre vibrantes e dispostas a dar mais do que receber. Mulheres que gritam nas ruas, evocando seus próprios fantasmas.

    Até o dia em que vemos, recordem, que há limites, sim. Para tudo nessa vida.

    São Paulo, inferno astral, 2009.

    (*) Marli Gonçalves, jornalista. Sem análises psicológicas, por favor. Está tudo bem: sou uma otimista por natureza. Também sou resignada, diante de coisas que não dá para a gente mudar. Mas não me conformarei tão fácil enquanto sentir como as pessoas estão desistindo tão fácil. ([email protected]) Os artigos de Marli Gonçalves são publicados originalmente em www.brickmann.com.br