Malambas de África

    (*) Dulce Britto
    Depois de oito horas de voo – de São Paulo a Johanesburgo (capital da África do Sul e sede da próxima Copa do Mundo) -, com mais 1 hora até Maputo e mais 1 hora e 30 minutos pela LAM (Linhas Aéreas Moçambicanas), isso tudo sem computar as três horas de São Luis até São Paulo – chego em Tete. É a província mais distante (1.600 quilômetros da capital de Moçambique, Maput), e tem fuso horário de cinco horas de diferença do Brasil.

    Estou num país com inúmeros países dentro de um único território. Cabem as mais diversas leituras nesse lugar em que procuro a cada dia manter a curiosidade aguçada, o olhar gentil e o acordar diário de meus sentidos para apreciar e apreender tudo o que me é oferecido de novo.

    O que leio me dá referência, porém nada comparável a andar pela rua e me misturar com essa gente tão diferente em seu vestir, falar, se comportar… Misturar é força de expressão, pois esse meu tipo europeu salta aos olhos e é difícil não ser eu objeto de olhares desconfiados e da curiosidade desses homens e mulheres. Nada que se possa chamar de hostil, somente diferente e com nenhum peso de preconceito.
    Moçambique é realmente muito grande. Dentro dele cabem mais de 25 dialetos. Desde 1975, quando ficou independente, o português é o idioma oficial do país.

    Muitas das línguas faladas em Moçambique não possuem a palavra “pobre”, a expressão usada é “chisiwana”, e não significa apenas falta de bens ou condições de viver e se sustentar. O significado me emocionou. “Chisiwana” é sinônimo de órfão, pois a maior pobreza é não ter família. A família é a principal rede de sobrevivência nas regiões rurais. Ser pobre é ser sozinho e solitário, sem ninguém para zelar e ser zelado, sem ninguém para amar e cuidar e receber o mesmo em troca.

    Hoje, mais de 12% fez dela o primeiro idioma, mas a grande maioria fala e entende. É o que garante o escritor Mia Couto, um biólogo e poeta. Ou seria o contrário?

    Mia Couto é um dos mais conhecidos e premiados escritores moçambicanos, uma rara sensibilidade e um texto invejável. É na mão gentil e apaixonada dele que tenho segurado e feito muitas viagens pelos saberes dessa terra mágica. É ele quem me ensina e diz: “Nessas regiões encontro gente que não sabe ler livros. Mas que sabe ler seu mundo. Nesse território, eu não tenho apenas sonhos. Eu sou sonhável”.

    Eu sigo, sonhando junto…

    Machambas são as pequenas propriedades do país, que não o tem cercas e cujos limites são determinados por uma pedra, uma árvore, uma elevação do solo. Na paisagem ressequida e de árvores pequenas (que se parece com o nosso sertão), muitos tons amarelados e marrons, e pontilhado de enormes árvores que se chamam embondeiros, mais conhecidos por nós pelo nome de baobás (lembra-se da árvore do livro O pequeno Príncipe? Estamos falando da própria). O fruto do embondeiro é muito apreciado. Chama-se malembe e as crianças se lambuzam naqueles caroços, que parecem de ingás. A casca é aveludada ao toque e dura para se quebrar.

    Não há transporte público (apenas um ônibus, o machibumbo). Todos andam nas chapas, as nossas conhecidas vans, superlotadas de gente, galinhas, peixes e alguns cabritos, além de sacos de carvão e compras diversas. O trânsito anda na mão inglesa e eu, com a constante impressão que não há motoristas nos carros, ou que estão andando nas vias erradas. Já passei alguns sustos ao atravessar as ruas e olhar para os lados errados…

    usina2Fiz um passeio até o distrito de Songo, distante 250 quilômetros de Tete, e onde está localizada a Hidrelétrica de Cahora Bassa, o grande orgulho do povo moçambicano, um colosso da engenharia. Os paredões de pedra têm 160 metros de altura por 303 metros de comprimento.

    É ali, naquele canyon majestoso, que o rio Zambeze, o segundo maior da África, depois do Nilo, foi domado. Cahora Bassa entrou em operação em 1977, passando a fornecer energia – 90% vão alimentar o progresso da África do Sul e o Zimbábue, enquanto comunidades moçambicanas permanecem com as luzes de rudimentares lamparinas.

    Ao contrário de nossas cidades interioranas, cujos tetos das casas são coalhados de parabólicas, aqui não se vê uma sequer. A energia elétrica não existe e a maior riqueza de cada lugar é o chafariz onde se abastecem da preciosa e difícil água.

    O lugar é lindo. O rio Zambese tem coloração verde esmeralda. Sob o sol escaldante a vontade é dar um mergulho, mas está infestado de crocodilos e alguns hipopótamos muito mal humorados. Na África eles matam mais humanos que os elefantes.

    Na paisagem da savana se sobressaem os embondeiros, gigantes e majestosos, e a terra é cortada por leitos secos de rios, que só aparecem nas estações invernosas, como amplas estradas cortando o cenário, e ligando o nada a coisa alguma.

    (Dulce Britto é pernambucana de Arcoverde e viaja por Moçambique.)